06 abril 2004

As sobras


Viva a intensidade de cada momento. Viva cada dia como se fosse o último. Viva agora, já.

Se me permitem a ousadia: um pouco a gente vive no ato, outro pouco deixa pra depois. É assim, assim sempre foi, e assim será. E que nos perdoem os livros de auto-ajuda e os consultores de felicidade.

Ninguém sabe dar de si a quantia exata do que seria o “ideal” para aquele momento. Do contrário não haveria os nadadores – que, não podendo encurtar o caminho a percorrer, tentam espremer o instante, e insistem nessa auto-superação ad infinitum.

É o jeito. Fazer planos, criar expectativas, esperar. A última que morre vem daí; esperança tem quem espera. Embora se saiba que a única certeza é a morte, a verdade é esta: ninguém sequer cogita o próprio fim – porque somos humanos, falíveis e, graças a Deus, bastante tolos.

Todas as vezes que estive num momento importante, apenas me virei como pude. Para conter as lágrimas, para não querer engolir alguém de alegria, ou mesmo tentando “aproveitar ao máximo”: tão somente me virei, dei meu jeito. E passou.

Depois fiquei revivendo o recém-ocorrido, com a quantia que sobrou de mim naquele ato. E digo mais: às vezes o que sobra na panela, remexido, requentado, é ainda melhor que o próprio almoço servido ao meio-dia. Tem o gostinho do nosso aprendizado, o tempero de alguma fantasia, uma ou outra frase acrescida de última hora – mesmo que não a tenhamos dito antes, mas caberia muito bem ali, que mal há? Pode vir com alguma saudade (condimento capaz de transformar o trivial em banquete).

Tudo isso é graças à capacidade que temos de burlar o instante, e levar pela vida algumas sobras de nós mesmos. Aquilo que não foi totalmente usado naquele momento, e que, apertando um pouquinho ali perto da tampa, ainda sai.

Ou alguém pode dizer que não sentiu o mesmo arrepio quando ouviu no rádio a música de ontem à noite?

Sem querer fazer um elogio ao ficar-esperando-sentado, ou ao famoso “quando eu me aposentar, serei feliz”, nada disso. Apenas poderíamos nos livrar um pouco dessa obrigação de ir a todas as festas, estar em todos os lugares, ler todos os cadernos de todos os jornais de todos os dias, seguir todas as tendências, e ainda meditar para ficar (acredite!) zen.

Sei que é difícil; que a roda não pára e, às vezes, ameaça passar por cima. Ainda assim, insisto nas sobras. São aquelas respiradas, as pausas, uma ou outra bobeada: os momentos em que “saímos” do momento. Ali, nos guardamos um bocadinho para depois. São elas, as sobras, que nos permitem passar pela vida e observar, refletir, contemplar. Não só correr, fazer, passar.

E, se nada disso lhe parecer convincente: são elas que nos permitem ser jovem aos 80.

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