25 abril 2004

Um domingo mais que londrino no Rio


Graças ao bom Deus, o Rio de Janeiro amanheceu com chuva e uma temperatura de agradar gaúchos e troianos. Menos os cariocas, claro.

Acordei inspiradíssima. Não, mais que isso: apaixonada. Abri bem a porta da varanda, deixei o ventinho me balançar os cabelos borgonha, foi quando me ocorreu: sou uma cidadã feliz!

Pensei em sair e aproveitar o dia lindo – afinal, não é sempre que São Pedro nos proporciona um ar de Londres no Rio -, e assim fiz: peguei o carro e fui dar umas voltas. Quanta inocência.

Já na primeira esquina, água por cima e por baixo. O meu “clima londrino” era mais que uma paisagem romântica, conforme minha espiada (otimista e abobalhada) pela sacada diagnosticara. Era um toró, mesmo. E dos piores.

As ruas estavam alagadas, e nisso minha inocência acertou, mesmo errando: parecia a Europa. Mais precisamente, Veneza.

Desprovida de remos, e com um pânico absurdo de aquaplanar – que trago desde a infância, sob forma de trauma -, resolvi encarar a Av. das Américas a 40km/h. Mas os demais motoristas, certamente pilotos de anfíbios-blindados-importados-impecáveis, não curtiram muito o meu, digamos, passeio. E fez-se uma sinfonia de buzinas, constituindo um rastro sonoro atrás de mim, como se eu fosse presidente da república, ou ainda mais célebre: um big brother.

Muito bem, eu estava atravancando o trânsito numa das maiores avenidas do Rio de Janeiro. Havia dezenas de motoristas atrás de mim, lançando ruídos de protesto, indignados. O último deles, provavelmente, temia ser encaixotado por um desavisado que viesse a 80km. Os que passavam pela minha esquerda, não raro, convidavam-me para momentos íntimos em suas companhias – ou assim interpretei.

Neste momento, fiz o que qualquer cidadã consciente de suas fraquezas faria: liguei o rádio no último volume. E segui.

Quando, a muito custo, consegui chegar ao hipermercado mais próximo, sofri um misto de alívio e desespero: enfim, havia encontrado uma vaga. No entanto, um outro sujeito tinha a pretensão descabida de enfiar sua lata velha no mesmo espaço que eu avistava. E com a vantagem de ter chegado antes – afinal, eu viera a 40km/h.

Cavalheirismo, nessas horas, é coisa da vovó. Mas eu tentei. Abri meu vidro insul-filmado, joguei um sorriso meio Rachel - do Friends -, passei a mão no cabelo borgonha, suspirei. Levantei a sobrancelha, como quem diz, foi tão difícil arrumar essa vaga, que azar, ela já estava “reservada”, mas será que você não poderia...?

Não. O elemento me brindou com um esguicho de água empoçada, e, antes que eu percebesse, já estava balançando o chaveirinho na cintura, rumo à porta de entrada.

Fiquei dando mais umas voltas, até que consegui uma vaga longínqua que me fez chegar às dependências do supermercado com aparência e bufadas de quem viera a nado. Fora a raiva, que era de morder o cabo do guarda-chuva que eu não tinha.

Feitas as compras e pagas as contas, voltei para casa, sempre seguida pelo coro fiel dos anfíbios automotivos. E me pus a contabilizar as perdas de uma linda tarde de outono no Rio de Janeiro, quando obtive um consolo quase filosófico: quando perdemos, nunca estamos sozinhos.

Consolo esse que me veio da observação de um singelo rótulo: comprei um queijo vencido.