17 dezembro 2008

Da arte de reclamar em público

Jamais reclamo de coisa alguma em público. No trânsito, nas filas de banco e supermercado, nas calçadas, marquises, escadarias e corredores da rotina implacável - todos passam à minha frente, cortam meu barato e furam minha paciência sem que eu dê a mínima. Sempre fui assim. Passo por santa ou panaca, e não sou nenhuma das duas: sou avoada mesmo. E um bocado tímida.

Espere um pouco, não estou dizendo que sou aquela mala-sem-noção que trava o trânsito dos carrinhos verificando a validade da sardinha, de cócoras. Isso, não! Quando posso ser protagonista das minhas aventuras, deixe comigo, resolvo. Nos momentos em que cabe a mim checar, comparar, escolher, experimentar e até mesmo (me orgulho muito) maquiar, vestir e calçar, sou ágil e certeira. Não fico assim, na cabine da loja: é essa ou essa, ai, ai...? Nunca. Empilho meus ais e levo tudo embora, para o terrível momento do arrependimento, se for o caso. Mas não titubeio em público, nem manifesto descontentamento em frente a desconhecidos. Rabugice é coisa íntima, e só me aturam os valentes.

Entretanto, quando a pendenga não se define e não é minha a chave da saída, mergulho em Deus sabe qual subterrâneo das caraminholas e digo adeus ao mundo real. Reflito, medito, escrevo mentalmente, componho melodias lindíssimas (que depois verifico já existirem há séculos), chego a resolver dramas psíquicos dos quais anos de divã não deram conta – sobretudo os dramas dos outros, claro. E devo ter uma cara de trouxa, porque já chegaram a me questionar, no supermercado:

- Você não vai reclamar porque esse cara está passando as compras na fila dos 10 volumes, aí na sua frente? Ele tem muito mais que 10 volumes! Muito mais, olha lá!

Caríssimo senhor gentil, obrigada por avisar, mas, no dia em que eu me puser a contar os volumes dos carrinhos alheios, pode mandar me internar. Devo estar sofrendo de um terrível tédio interior e já nem me interessa andar solta às compras, comprar para quê? Deixa eu curtir meus plágios imaginários que, com certeza, sou mais feliz assim.

Acontece que há uma primeira vez para tudo, principalmente o que não devia. Estava parada na fila dos frios, tranqüila e “compondo” minhas trilhas sonoras, quando parou atrás de mim um adolescente. Devia ter uns 15 anos, bermudão, a listinha de compras amassada entre os dedos e aquela cara de quem odiou a missão de comprar queijo. Senti solidariedade, ora, já fui uma guria afoita e “ocupada” demais para auxiliar nas tarefas da família. O púbere bufava, a fila empacava, e eu concordei com a sobrancelha: saco.

Lá junto ao balcão, mais afoita que todos nós, atravessa uma perua com óculos de tartaruga e vai direto dando ordens ao atendente. Quer meio quilo disso, meio daquilo, e a búfala, e o peru fatiado bem fininho, mas sem quebrar. Olhei o garoto, que bufou novamente, agora com ironia e um pouco de raiva. Bastou. Espichei o pescoço de tal forma que ouvi um estalo, mas nem liguei. Limpei a garganta com um pigarro dramático e emendei o seguinte discurso:

- Aê! Tem filaaaaa!!!

Silêncio constrangedor. Senti um terrível pressentimento. Minha adversária me olhou tranqüilamente e explicou:

- Querida, estou aqui há séculos. Cheguei muito antes de você. Jamais faria um negócio desses, furar a fila. Está pensando que eu sou o quê?

Quando eu ia levantando a voz para – sei lá, contrariar, dizer que era um abuso, que ela estava mentindo, que eu conheço a família dela e todos são assim, que é uma pegadinha e vai cair um Papai Noel do teto! -, pois a moça que estava entre nós duas fez uma cara de “cala a boca” e completou:

- É verdade. Ela está comprando uma porção de coisas, só tinha saído um segundo para ver uma coisa enquanto o rapaz estava fatiando o presunto.

Na mesma hora, e usando o mesmo tom e o mesmo pescoço de girafa, pedi sonoras desculpas à perua inocente. E segui pedindo. E pedi outra vez. Quando dei por mim, já tinha pedido desculpas umas dez vezes e, na verdade, pedia era para mim mesma. Que vexame, eu não podia me perdoar.

Que o menino adolescente estivesse indignado porque a mulher comprava quilos e mais quilos, isso pude compreender. O que não posso conceber é que, justo na estréia da minha audácia de reivindicar meus direitos em público, eu tenha acabado desmoralizada na sarjeta da injustiça. Acusar uma inocente. Tudo culpa da minha distração de proporções dramatúrgicas. Se ela estava ali quando cheguei, juro que não vi. Se tivesse uma árvore, um gambá, um rinoceronte – teria visto?

Se a estivesse a Madonna cantando Holyday em cima do queijo bola, ainda assim talvez eu olhasse e pensasse: que melodia interessante acabo de inventar, impressão minha ou tem uma loira animadíssima dançando no queijo? Céus!