Da série “Mulher é Bicho Triste”
I - Atrás da perfeição
No banheiro do Barrashopping, uma mulher se olhava insistentemente no espelho. Uns trinta, trinta e poucos anos. Tipo da mulher caprichosa, alinhada; calça e blusa combinando, tudo muito verdinho. O cabelo-farmácia fazia o telhado cor de barro vermelho. Assim, falando, parece gozado, mas o todo era bem comportado. Magra e baixa, ainda.
Entrei, fiz o que eu tinha que fazer, olhei no espelho. Ela continuava naquela. Pose pra lá, pose pra cá, biquinho, mão no cabelo, sobe a calça, ajeita o decote, e tudo de novo. Estou quase saindo, ela me ataca:
- Tá legal, hein?
(Legal, o quê? Se eu estava legal? Ou ela? Ou a roupa? Ou o batom? Ou o cheiro do banheiro? Na dúvida...)
- Sim, muito legal.
- Mas eu digo a calça...
- Justamente. Muito, muito legal. A calça.
- Mas você nem viu atrás!
- Vira, então.
Virou. Até onde eu entendo de bunda de mulher, tudo certinho.
- Continua legal.
- Tem certeza?
- Tenho.
Acho que ela não se convenceu.
- Você não viu, o... o... problema? (De cantinho, cochichando).
O problema, eu já desconfiava, era de ordem psíquica. Mas não quis contrariar. Paciência:
- Que problema?
- Não viu mesmo?
- Na bunda? - arrisquei.
- Meu Deus, você viu!
- Vi nada! Só perguntei, mas não vi problema nenhum. Tem?
- Então, como é que sabia que era na bunda?
Cansei:
- Deus, eu não sabia que era na bunda! Eu não sei da sua bunda, do seu problema, eu não sei de nada! Pra mim, tá tudo jóia: bunda, calça, blusa, tudo! O que há com você, afinal? Tá menstruada? Pode ficar tranqüila que não vazou. É celulite? Imperceptível! Sua bunda me parece uma bunda bacana, normal, uma bunda quase zero km...
- Aí é que está! Você percebeu! Aí é que está!
- Onde? Onde?
- Minha bunda é... eu uso aquelas... comprei ontem, sabe? Aquelas calcinhas que já vêm com a... bunda.
Não é que a bunda era quase zerinho, mesmo? Quase ri.
- Você usa uma bunda falsa. Postiça, é isso? Mas pra quê?
- Porque eu não tenho bunda.
- Ah, não é possível. Bunda, todo mundo tem.
- Menos eu. Minha bunda é reta.
Uma mulher de trinta e poucos, quase chorando na minha frente. A bunda era reta. Eu quis consertar:
- Por outro lado, seus seios não são nada retos, são? Estou vendo que não, hein? Hein? (Risinho de incentivo, como quem elogia criança).
- Eu uso enchimento, também.
Pronto. A mulher era de osso e almofadas! Com sorte, alguma carne. Parei de arriscar; sabe lá o que ainda pode haver de mentirinha nesse corpo. Quis entender:
- Olha, se você usa enchimentos, é porque deve se sentir bem assim. Não?
- Não! Claro que não!
- E por que usa, então?
- Porque sou toda reta. (Me puxou de cantinho de novo) Ninguém em casa!
- Sim, mas agora você tratou de resolver o problema! Não ficou bacana?
- É, acho que sim, mas sinto como se eu estivesse totalmente disfarçada, sabe? Assim, camuflando os erros da natureza.
Sentei. Contou a vida toda. Separou no mês passado. Frágil. Carente. Ainda gosta do ex, que é um canalha. A mãe – uma coroa enxuta, tipo gostosona - vive dizendo que ela é uma tábua, que puxou ao pai: que é uma porta, de burro.
Judiaria. A mulher é super jeitosa! Mas não se gosta.
- Mas você é super bonita, ô...
- Fátima.
- Fátima! Lindo nome. Só tem que se sentir bem, pra ficar mais bonita ainda. E dar um fora nesse canalha de uma vez por todas! Escuta, Fátima, não é possível que você pense mesmo que o seu bem-estar é diretamente proporcional ao tamanho dos glúteos. Não, não é assim que funciona. Funciona você se sentir bem, com ou sem as almofadas - saiu! -, e levar a vida adiante. Pra frente!
Fiquei mais uns minutos, e a convenci a sair dali. Disse-me que já estava há um bom tempo, antes de eu chegar. Senti que melhorou um pouco, mas foi direto ligar pro bundão do ex-marido, com a desculpa porca de pedir que ele fosse trocar uma lâmpada no apartamento que era deles.
- Não é justo, só porque estamos separados, eu ter que trocar as lâmpadas! Não alcanço!
Fiz que concordei, já aproveitando pra me despedir e vir embora.
Divisão de tarefas. Sei.
Queria mesmo era mostrar a bunda nova.
Esperança ou a falta dela
Há 3 anos
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