17 junho 2001

Aboletada na memória
Bíbi Da Pieve

Onde será que a gente fica quando está voando na memória, observando o passado?

Quando lembro os tempos de criança, uma cena me vem à cabeça, e eu revejo tudo, como se estivesse mesmo lá. A questão é: será que não estou?

E, se estou, será que não me falta espaço? Será que não fica apertado? Desconfortável?

Foi refletindo sobre isso que eu decidi criar uma poltrona vaga. Sempre que alguma coisa boa estiver acontecendo, eu preciso me lembrar de mim; lembrar que eu, no futuro, posso querer voltar e dar uma olhadinha naquela cena de novo. Nada mais justo do que guardar um lugar para mim mesma.

A gente nunca sabe o dia de amanhã. Posso enlouquecer e resolver morar na Índia. Quando estiver lá, vou sentir saudade do calçadão e da água-de-coco, não vou? Então. Já reservo uma cadeira, e enfio dois canudinhos no coco - que comprar dois já seria demais, convenhamos, eu que beba muita água lá na Índia, antes da viagem, e pronto.

O ser humano vai ficando velho, e as idéias cansam de morar certinho dentro da cabeça da gente. Começam a querer fazer baderna lá. Tudo bem, eu penso que ninguém vai se chatear pelo fato de eu (hoje!) querer ser solidária comigo mesma (amanhã!). Isso é que é seguro de vida!

Conforme o tempo vai passando, vamos precisando de um certo conforto. Já não encaro aqueles festivais de rock, por exemplo. Além disso, quanto mais anos vivemos, mais longos são os vôos de memória. Já se vai longe a infância, meu amigo; não é nenhum Rio - São Paulo, não! Sem contar que há muito mais lugares para eu visitar, à medida que vou saindo deles.

Tudo isso conta. É coerente que eu queira me aboletar de maneira muito cômoda quando vier me visitar; afinal, devo me sentir sempre em casa.

Neste momento, por exemplo, eu posso estar aqui comigo. Nesse caso, permita-me dizer a mim mesma: querida, fique à vontade. Não se assuste, isto é só um vôo de memória. Na verdade, nada do que você vê está realmente acontecendo com você agora, mas sim comigo. Ou, melhor - com você, já aconteceu.

Na verdade, somos a mesma pessoa, e você só está confortavelmente instalada aqui porque eu tive o cuidado de providenciar a infra-estrutura necessária para que tudo corresse bem na sua viagem. Não é maravilhoso? Garanto que você está adorando.

Se você veio do ano que vem, querida, peço que não se demore muito, se não se importar. Sabe como é, a fila é grande; pretendo passar dos 80. Se bobear, já tem uma de nós com setentinha de ficha na mão, vamos lá, respeite-me idosa.

Pois não? A senhora pode entrar, e ficar quanto tempo desejar!
Quantos anos? Ah, me desculpe, que indiscrição. Mas, afinal, não estamos só entre... mim? Deixe de frescura, diga logo quantos anos eu tenho!

83??? Maravilha!

O negócio é o seguinte; pra senhora, eu posso abrir o jogo. Tá vendo essa ficha aqui? Pode começar a preencher. Onde mora, quantos filhos, situação financeira, psicológica, matrimonial... a partir de 2001, eu quero saber de tudo!

Ou vai me dizer que acreditou naquele papo romântico de solidariedade comigo mesma? Ora! Bem que vê que a senhora não me conhece!!!
O homem do calçadão
Bíbi Da Pieve

Pensei que fosse só uma caminhada normal, corriqueira. Saí de casa, como sempre, em direção à praia, tranqüilamente. Não sabia o que me esperava naquele dia.

Sempre ouço falar em atropelamento; vejo no cinema, até quase atropelei um cachorro quando estava aprendendo a dirigir. Faz muito tempo. Mas sempre pensamos que essas coisas só acontecem com os outros.

Foi no calçadão da praia, mesmo. O sol já ia mergulhando naquela antena parabólica de sempre, lá no outro lado da rua. Eu olhava o dourado reflexo no mar, e ouvia Gil no walkman. "Tem que morrer pra germinar..."

O peso do walkman na minha cintura, do lado direito, sempre dá a falsa impressão de que o short vai cair. Mas não vai. Nunca caiu. Não seria agora. Eu sei que não cai; só fica um pouquinho repuxado ali. Mesmo sabendo, eu me distraí. Por alguns segundos, fiquei brincando de puxar o short pra cima; dava mais dois passos, ele caía, eu puxava de novo. Tudo em vão. Se eu soubesse do perigo que corria, não me entregaria a tal distração nem por um instante. Mas a gente nunca sabe.

Foi então que, de repente, aquilo surgiu do nada. E me atropelou, de maneira covarde, reduzindo-me a pó. Foi como se o mundo todo assumisse um tamanho milhões de vezes maior do que a sua real dimensão, de modo que só posso concluir que não foi ele que aumentou - mas eu que diminuí, esfarelando-me, lenta e dolorosamente, a partir do momento em que aquilo me atropelou. Em pleno calçadão da praia.

Aquilo deveria ter uns trinta e poucos anos. Usava um par de tênis cuja placa não pude anotar; mas sei que não eram sujos, nem limpinhos demais. Não havia meias. Direto do cano dos tênis, surgia um par de tornozelos perfeitos, que, não contentes, ainda culminavam nas batatas, aquelas batatas, as batatas da perna, que brotavam sabe lá Deus de que natureza, e que reinavam, rígidas, marcantes, decididas, descascadas e
descaradas, bem na minha frente.

Um já me bastaria, mas aquilo tinha dois joelhos, de onde surgia o par de coxas mais exatas que eu já vira em toda a minha vida. O número certo de pêlos; nem um fiozinho a menos, nem um a mais. A tensão dos músculos, a cadência, a tonalidade - enfim, a personalidade toda, caprichosamente traçada pelo Divino naquelas pernas cinematográficas.

Usava um short preto e branco, e uma camiseta branca. Lisa. Simples. Básica. Só. Coisa de quem não ousa sobrecarregar o colorido da própria natureza. E faz bem. Panos dispersam.

Fosse tudo isso, como de fato era, e corresse pela praia, como de fato corria, não me atropelaria - se não fosse pelo desaforado pecado que sua cabeça cometia: desciam dela, como uma cascata de caramelo, milhares de fios de um cabelo castanho-dourado, meio liso, meio cacheado, que desaguava nas rochas fortes daqueles fartos ombros. Era o meu fim.

Quando dei por mim, já totalmente derrubada e evaporada, o Gil ainda me soprava no ouvido: "dura caminhada..."

Ainda não sei se aquela figura existiu mesmo, ou se foi apenas uma alucinação resultante do chá de pôr-do-sol naquela xícara parabólica, maresia, vento e Gil. Se eu raciocinasse rápido, poderia ter caído no chão. Nesse caso, se eu tivesse o narizinho e as pernas da Sandrinha (Bullock, claro), certamente aquele moço, fosse fictício ou não, teria ido me juntar na ciclovia. E, sem sombra de dúvida, tascaria um beijo apaixonado bem no meio da minha boca vermelha. E seríamos felizes para sempre.

Mas, como a dura caminhada era tão concreta quanto aquele calçadão, só me resta viver o resto dos meus dias com a cruel incerteza - não sei se aquele homem existia mesmo.

Certos homens nascem da gente; depois choram, depois crescem, depois morrem - lá fora.

Outros, nascem na gente. Depois choramos, depois crescemos, depois morremos - aqui dentro. Sem que eles sequer tenham existido, um dia, lá fora.

Não sei se o homem do calçadão é um homem de verdade. Mas posso adiantar que, existindo, ele não faz muita justiça.