09 maio 2004

Praia do Recreio




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O jogo da velha


“Estou me achando um pouco medíocre. Você também acorda assim, às vezes?
Medíocre de cabelo e pele, medíocre de texto, medíocre de arrastar chinelos e lavar a louça de ontem à noite. Pensando nas compras da semana, no sabão em pó que acabou, no absurdo chamado Maluf, nas mudanças da Lei Rouanet. E me dói o lombo. Tudo isso, assim, superficialmente, claro. Passando um paninho na mesa, sabe como é? Medíocre.”


Tenho vontade de pegar minha autocrítica - sempre tão pontual e implacável - e pendurá-la um pouquinho na varanda para pegar um vento. Sim, porque uma coisa é ter senso crítico consigo próprio. Outra, bem diferente, é carregar uma velha ranzinza no ombro esquerdo, a resmungar ininterruptamente, cutucando o ouvido da gente com uma bengala como quem quer chamar atenção. Velha mais chata.

Depois de deixar a velha na varanda, corro lá e trago de volta, porque não vivo sem ela mesmo. Converso com a velha, dou-lhe atenção, chego até a mimá-la um pouco. E me dói o lombo outra vez. E desconfio que seja o peso da velha.

Ouvir da velha que sou medíocre, isso é de lei. Eu tenho um texto que data de 1987, eu tinha uns dez anos, e dizia assim: “eu queria ser delicada como essa bailarina (de um porta-jóias musical que acabara de ganhar da minha avó). A bailarina não fala palavrão e não bate nos outros.” E segue, por uma página de caderno grande, a velha me soprando indelicadezas por eu ser tão indelicada.

No dia anterior, eu tinha esfolado um coleguinha de turma que vinha me importunando havia meses, acusando-me de babaquices infundadas. Investi uma vez só, de mão fechada, e o pobrezinho se foi ao chão, de forma que até me assustei - não seria pra tanto.

Mas já estava feita a merda (não perdi o hábito do palavrão), e só me restou, além da repreensão dos professores e dos poucos amigos daquele canalha em miniatura, a crítica feroz da minha velha de estimação. Que eu não era delicada como a bailarina, veja só.
Ralhava a velha, e ainda ralha, quando acha que fui longe demais em alguma coisa. Mas, ainda mais, ralha quando pensa que fui de menos. E me cutuca o ouvido com a bengala: corre, infeliz! Corre, que a vida é uma só!

E saio, bem pateta, tropeçando e querendo me aprofundar nalguma bobagem que me daria o título de “eu aproveitei 100%”. Para, finalmente, a velha me criticar outra vez: caiu? Bem feito! Não olha por onde anda?

Agora eu pergunto: como é que a pessoa pode andar, olhar por onde anda, ouvir a própria razão, sentir a própria emoção, carregar uma velha gagá no ombro esquerdo e ainda ser feliz nas horas vagas?

Sai pra lá, eu não sou essa velha. Por isso coloquei o primeiro parágrafo entre aspas: credito à velha. E estou saindo agora mesmo para lhe comprar uma cadeira de balanço.

Se ela não sai, pelo menos que se distraia. Vá fazer um tricô, sei lá.