29 outubro 2002

Os cientistas descobriram, com quase 100% de certeza (vai saber o que é isso), que existe, no centro da Via Láctea – galáxia da qual nosso rico planeta faz parte -, um imenso buraco negro que funciona como um redemoinho, sugando os corpos sólidos para dentro de si.

Ou seja, a Via Láctea tem um ralo. E já puxaram a tampa.

Mas a Terra não corre risco de entrar pelo cano, segundo eles, porque estamos muito afastados do buraco. Devemos suspirar aliviados, portanto.

Eu fico a pensar, inevitavelmente, no paralelo que pode se traçado entre a galáxia – ou seja o que for – e as nossas próprias entranhas. Somos poeira cósmica, está correto, mas alguma função aqui nós devemos ter.

Estamos longe demais do ralo da pia gigante, mas temos nossas próprias piazinhas, e nossos redemoinhos também não são de se jogar fora. Com todo respeito à Via Láctea, a vida terrestre já dá trabalho suficiente, de modo que não vou me preocupar com o encanamento da galáxia. Já seria demais.

O meu problema, por enquanto, é achar o tom correto para a canção. E isso pode ser muito complicado, tão complicado quanto me equilibrar na dança cósmica dos planetas, cuidando para não resvalar.

Se eu não fosse tão careta e covarde, ouviria o vento dos meus ralos internos assobiando, e seguiria aquele tom, ainda que não soasse exatamente como eu gostaria. O tom da intuição, à sombra da razão, que sempre canta os mesmos versos... mas eu finjo que não escuto.

E você não vá tirando o seu da reta, porque – tenho certeza – é igualzinho a mim. Ou quase.

Ah, mas a esperança equilibrista... é a última que entra pelo cano.

Será que estamos girando para algum sentido, ou só estamos correndo em volta do rabo? Eu voto no sentido, mas, volta e meia, volta o rabo e me derruba no chão. Complicado. (Ninguém disse que seria fácil. Simples, eles me dizem a toda hora. Mas, fácil... não).

Quando eu me sinto girando ralo abaixo - é quando estou encucada com dívidas, dando voltas em torno das mesmas dúvidas, achando que me falta talento, que envelheço e me desoriento cada vez mais e mais. É quando me pego fazendo contas nas pontas dos dedos, mesquinharia de sentimentos, quando me esqueço de abraçar meu irmão, por exemplo, e durmo pensando que estou só (mentira, estamos todos girando juntos).

Eu me sinto ralo adentro quando penso em medir emoções, catalogar os endereços dos beijos que me dão, com medo de dobrar a próxima esquina sem uma segurança, sem uma garantia qualquer, sem um papel, sem nada, sem nada. E, cada vez em que grudo as etiquetas nos vidros, eu me esqueço do verdadeiro sabor que eles tinham. A burocracia evapora o conteúdo.

Quando eu me sinto girando para o alto – é quando me desapego, eu me despeço dos medos, não quero saber das minhas convicções. É quando dou a mão ao simples, ao óbvio, quando me permito o ócio, e me entrego ao coração. Sem culpa, sem mania de perfeição.

Eu giro para dentro do ralo quando passo horas discursando sobre qualquer coisa, e me dói o peito enquanto tento ser verdadeira, mas não consigo.
Eu giro para fora do ralo quando, em vez de discursar, percebo que todo texto do mundo cabe todo dentro de um gesto.

E a Via Láctea vem parar bem no meio das minhas duas mãos.