15 fevereiro 2005

Trabalho sujo
* da série: nós não vale um avulso, mas se ama de balaio.

Estamos olhando um daqueles programas de “transformação” (antes e depois) de um canal a cabo. Aparece a mulher sendo transformada. Maquiagem. Cabelo. Roupas.

De repente, entra uma imagem dela “antes”. Meu irmão olha, compenetrado. Suspira lento, e reflete:

- É... alguém tem que fazer o trabalho sujo.
Insônia em 15 marteladas


1. Deram para fazer obras no apartamento vizinho. Começam às 9h da matina. Todo dia. Sábado incluso. Show de bola.

2. Fui jogar o lixo no duto hoje, e dei uma espiadela para dentro. Estão derrubando é tudo. Vai sobrar pouco. Olha, nota 10.

3. À tarde, não bastassem as marteladas – que deveriam produzir um efeito relaxante, ao menos neles -, deram para brigar. Bem alto. Um se pôs contra o outro, a gritar.

4. “TU AGORA VAI MANDAR NI MIM? VAI MANDAR? TU AGORA É QUE VAI MANDAR NI MIM, É ISSO???” (Furioso, o do ni mim. Do outro – aquele que, supostamente, mandava - não ouvi palavra).

5. Fiquei aqui bem quietinha, com medo do pior.

6. E o pior se sucedeu. Ou seja, ninguém matou ninguém, e a destruição das paredes prosseguiu. Na mais perfeita paz.

7. Mas podia ter sido diferente. Tivesse o Mandão Mudo alterado – ou sequer emitido! - a voz com o Gritão Ni Mim, quiçá eu acabasse testemunhando uma tragédia grotesca. Martelo em punho, um ofendido Ni Mim estraçalharia a cuca do colega Mandão (agora Fônico, ex-Mudo), dó nem piedade, até que o sangue do atrevido se misturasse à tinta amarelo-manga cuidadosamente selecionada pelos...

8. Cruzes! A propósito, quem foi que escolheu essa tinta???

9. Não vem ao caso, deixemos o mau gosto de lado. Eu contava sobre a sangueira do Mandão (maldita boca!) esparramada pela ardósia do vizinho, atacado que fora pela mão nervosa do parceiro Ni Mim – a essa altura, já ex-parceiro, uma vez que vivo não trabalha com morto; ou, ainda, no caso do Mandão ser do tipo que agoniza-mas-não-faz-a-passagem, na certa não ia mais querer Ni Mim a martelar tão perto.

10. Fosse eu, não ia querer.

11. Tragédia por tragédia, melhor completa. Vamos que Mandão morra. Ni Mim vai preso, e, na cadeia, desprovido de ferramentas para quebrar tijolos e/ou abrir cocos, acaba também se desapegando desses conceitos rígidos - ni mim ninguém manda, ni mim ninguém isso, ninguém aquilo. Com o tempo, esquece.

12. Mas fica o apelido: Ni Mim. Um dia, a psicóloga da penitenciária pergunta se ele guarda alguma mágoa, ou se lembra quem lhe deu tão ímpar codinome. E a ferida se abre outra vez.

13. “Foi a mulher do 103. A metida que me dedurou. Por isso estou aqui.”

14. Comecei a escrever esta merda de madrugada. Agora mesmo é que não durmo mais.

15. E o pior é que as obras começam às 9h. Em ponto.