30 setembro 2001

Engarrafados na Nossa Senhora
Bíbi Da Pieve


Tive de ir a Copacabana, num domingo à noite. Dirigi até lá, e, assim que cheguei no bairro, o trânsito parou.

Quarenta minutos depois, quando entrei na R. Nossa Sra. de Copacabana, descobri: havia uma procissão. E eu estava engarrafada na Nossa Senhora.

Lentamente, fui seguindo aquela multidão de fiéis. Não havia outro caminho possível para mim, a não ser perseguir a imagem da santa, e rezar para não chegar tão atrasada ao meu compromisso.

Os fiéis, animadíssimos, iam cantando - "quem é que vai nessa barca de Jesus?" -; como se eu tivesse alguma opção.

Aproveitei, rezei o que eu sabia e o que não sabia. Pedi perdão pelos pecados cometidos, bem ali, em meio àquela atmosfera religiosa regada a monóxido de carbono e maresia.

No início, a situação até parecia sustentável. Mas, com o tempo, fui me vendo dentro de um cenário absurdo, quase surreal; alguma coisa cinematográfica ia tomando conta daquela realidade. A partir de então, os fatos viraram cenas:

Cena I - Lá pelas tantas, enquanto a multidão vai louvando a Deus, aparece uma sirene desesperada, de uma ambulância que também está ali, conosco, engarrafada na Nossa Senhora.

Cena II - Mas os fiéis não arredam o pé. E ainda suplicam: "Senhor, levai as almas para o céu!"

Cena III - Eu fico pensando que, assim, eles estão mesmo prestando um grande auxílio a Deus; naquela ambulância engarrafada, certamente deve haver uma alma prestes a decolar. Sobretudo se não chegar logo ao hospital.

Cena IV - Num muro grande, à minha esquerda, vejo um cartaz: "Tarô e búzios. Trago a pessoa amada em três dias."

Cena V - Na sarjeta, alheio à multidão, ao tarô e à sirene, um mendigo devora um pedaço de pão. E só.

Estamos, todos nós, engarrafados na Nossa Senhora. Não achei imagem mais apropriada para representar a nossa realidade do que uma procissão no asfalto duro, na decadência evidente de Copacabana.

A multidão que segue a santa é a mesma que ignora a prostituição e a miséria, e também é a mesma que se desespera com a decadência. Porque o desespero é comum a todos.

Somos cartomantes, prometendo soluções rápidas; somos mendigos, comendo o pão que o diabo amassou; somos fiéis, pedindo piedade divina; somos prostitutas, somos assaltantes, somos vítimas e somos cegos, porque estamos completamente perdidos, loucos de desespero: somos uma enorme sirene, gritando em cima de uma ambulância parada, dividida entre a fé e o caos, sem saber se vai ou se fica, se ainda há tempo, saída, salvação.

Enfim, peguei uma carona na barca de Jesus, e cheguei muitíssimo atrasada. Mas o problema não está nele, e muito menos na Nossa Senhora. O problema está na falta de opção, que acaba obstruindo os caminhos - quando a fé engarrafa as vias, é sinal de que há muita louvação e pouca ação.

E o Senhor há de convir comigo que, se continuarmos aqui parados, a tendência é afundarmos cinematograficamente em substâncias mal-cheirosas: isso, sim, seria o fim do mundo em 36mm.
Sobra homem no mercado - parte II
Bíbi Da Pieve



A Mariana tinha conhecido o Antônio na seção dos congelados, no supermercado, e jurava amor eterno.

Tinha até uma tese, que ia virar livro: sobra homem no mercado. Segundo a pesquisa, o principal ponto de aglomeração de material masculino disponível era, justamente, o supermercado.

O príncipe encantado estaria, veja só, bem na frente de um freezer, escolhendo o sabor da lasanha. Bastaria um pouco de intuição, e a moçoila esbarraria direto no homem da sua vida, como quem bate o olho e aponta - enfim, encontrei o atum em água e sal!

Mas, infelizmente, a Mariana não deu muita sorte. Veio me contar, meses depois de ter conhecido o Antônio, ex-homem da sua vida, que não haveria mais casamento algum.

- Não vingou! - ela fez uma cara de quem estava mais preocupada com a derrota da tese do que, propriamente, com o fim do Antônio.

Senti que o problema era mais teórico do que sentimental, e peguei leve. Aliás, aquilo era quase um caso acadêmico.

Mariana que se preze, como é sabido, nasceu lá pelo final da década de 70, com a mãe ouvindo Geraldo Vandré, e Belchior na voz da Elis Regina. E com isso não se brinca.

Uma vez ferida a intelectualidade da Mariana, a casa vem abaixo. Ou ela não se chama Mariana.

- Eu sinto muitíssimo, amiga. Nem sei o que dizer...

- Não se preocupe, eu vou ficar bem.

- Olha, eu sou péssima em conselhos. E nem somos assim tão íntimas.
Mas pode se abrir comigo. Claro, não precisa entrar em detalhes. Mas, afinal, o que há de errado com esse Antônio?

- Beija gelado e duro. Para lasanha congelada, só falta beijar à bolonhesa.

- Tão ruim assim?

- Pior. Na cama, então, é um fiasco.

- Credo!

- Fora isso, tem mania de grandeza. Não sabe ouvir. Repete sempre a última frase, pra ganhar tempo pensando em outra. Aperta o tubo de pasta de dente bem no meio. Pergunta "entendeu?", fica estressado no trânsito, batuca na mesa, vive com pressa. E cutuca.

Cheguei a ficar sem jeito, tamanha a desenvoltura da Mariana para debulhar a intimidade do pobre Antônio, assim, na minha frente. Parecia até que ela tinha catalogado os defeitos do ex-príncipe, pelo modo prático e eficiente com que discorrera sobre eles.

Quis mudar de assunto rápido; perguntei se, então, ela tinha desistido da tese e do livro.

- O quê? De jeito nenhum!!! O livro já está pronto, a tese segue valendo. Só porque não deu certo comigo, não quer dizer que não funcione com as outras pessoas. Sobra homem no mercado, e vai continuar sobrando! Não abro mão do meu livrinho, não!

- Mas você não se sente culpada por publicar uma tese que não pode comprovar? E se todas as Marianas se derem mal, como é que fica? O que é que você vai escrever, por exemplo, no prefácio desse livro?

- O Antônio é o prefácio. E depois não digam que eu não avisei. Pronto, isso é o máximo da minha honestidade literária!

- Que horror! Não acha que já está exagerando?? Você namorou com esse cara quase meio ano, e agora vai expor toda a intimidade do sujeito nas primeiras páginas de um livro?

- Tolinha. Namorado, mesmo, ele foi durante uns três dias. Depois do centésimo "entendeu?", o Antônio deixou de ser sujeito, e passou a ser mero objeto da minha pesquisa. Minha mãe já dizia: tudo bem, o amor é lindo, mas alguém tem de estudar aqui nesta pocilga!!!

A mãe da Mariana largou tudo, e foi exercer o seu jornalismo lá na África do Sul. O marido - que já é o quarto, depois do pai da Mariana, que morreu jovem - ainda está tentando achá-la. Quando conseguir, pretende trazê-la de volta à pocilga, doce pocilga onde viviam.