28 janeiro 2003

CHUVA E MAIS CHUVA

Gente amiga, confesso que não agüento mais essa água toda. Chega, perdeu a graça. Justo eu - uma gaúcha que adora quando pinta um céu cinza-chumbo aqui no Rio de Janeiro, para brincar de pampas -, justo eu.

Minha avó ensinava a fazer promessas, mas, mui discreta e cuidadosa com os termos, arriscava um eufemismo: “é uma troca de favores, minha filha”.

Nunca entendi direito o porquê de Deus se sentir, de certo modo, acarinhado por minhas reles atitudes politicamente corretas – como usar o fio dental todos os dias, por exemplo -, mas minha avó garantia que Ele se satisfazia, e muito. Vá lá.

Pois faço uma negociação com São Pedro: ele pára de mandar água, e eu paro de fingir que a minha varanda verde não existe. Caio de quatro, vou com tudo naquela ardósia empoeirada. Juro. Vassoura, pano e cera. Tou dizendo.

Há dias que eu olho, meio de lado, para a sacada, e depois pigarro, pigarro, pigarro... hein? O que eu estava fazendo, mesmo? Ah, sim, telefonar para a mãe, urgente!

A rua aqui em frente, acreditem se quiser, ainda não foi asfaltada. Imaginem. Cada carro que passa é mais poeira que levanta, sendo que aqui, no primeiro andar, amparamos boa parte da areia voadora.

Não bastasse o pó, parece que São Pedro adivinha: no horário de pique, manda chuva e vento varanda adentro, transformando aquela inocente sujeirinha em ardósia com cobertura de lama. Delícia.

Está prometido, portanto. São Pedro, se fizer a sua parte, terá os olhos ofuscados – com todo respeito – pelo brilho impecável da minha varanda. Que trate de comprar óculos escuros.

Segundo a previsão do tempo, no entanto, as chuvas durarão até o fim da semana. É isso que enfraquece a amizade, São Pedro. Se o senhor insistir nessa insossa campanha nebulosa, eu deixarei que a minha sacada marrom, outrora verde, crie bichos. Não estou nem aí!

(Minha avó diria que São Pedro e demais seres celestiais estariam, a essa altura, comovidos com meu apelo higiênico. De modo que prossigo).

Ouviu bem, São Pedro? Ou quer que repita?

(Minha avó diria – não se exalte, minha filha, não se exalte que Deus não gosta!).

Ah, não gosta? E que direito tem Ele de mandar esse aguaceiro para me atormentar a vida, além de esmagar pobres criaturas inocentes debaixo da lama que despenca, a torto e a direito, por aí? Fora a minha ardósia, claro!

(Querida, já me arrependi de tê-la ensinado a trocar favores com os santos! Não é assim que uma moça deve proceder diante de...)

Cala a boca, vó! O negócio aqui é entre A e B!

(Minha Santa Maria...!!)

Opa, não mete a mãe do Cara no meio! Pega leve, só estou fazendo um protesto, não precisa ofender também!
Olha aí, São Pedro, é ela quem está baixando o nível, o senhor tá vendo. O senhor tá vendo.

Depois disso, o que era para ser uma conversa informal passa a ser um debate descarado e exaltado. Já vi que a chuva vai continuar, minha ardósia vai seguir cada vez mais imunda, e nada mais pode ser feito.

Tudo culpa da minha avó, que não entende nada de administração de empresas.

Hoje em dia, quem não tiver uma postura ativa e agressiva vai ficar comendo poeira!


* * * * *

A RODA

De vez em quando pinta uma fraqueza de encarar a luz, de freqüentar o óbvio, de folhear os fatos, ler às pressas as coisas dos dias.

Como é necessário ir andando, mais que tudo!

Como é necessário só passar; e não importa a impressão – porque o registro é tão inútil, que se apaga em dois tempos.
E quanto tempo é gasto em constatação, quantos anos perdemos tentando traduzir a simplicidade das coisas, terminando por complicá-las, definindo, catalogando, organizando...

Bobagem.
A roda segue esmagando a estrada.E o rastro não dura quase nada.