20 junho 2001

Cada coisa leva embora a porcaria que pode
Bibi Da Pieve

Todo mundo tem um tio-avô que, lá pelas tantas, resolve morrer e deixar um buraco na infância da gente. O meu tio Peli foi-se embora quando eu tinha só nove anos, e deixou um rombo do tamanho do coração dele; tinha um enrome coração esbugalhado, uma alma esbugalhada, um jeito esbugalhado de ser. Tudo, no tio Peli, era grandioso. Por dentro.

Do lado de fora, o tio Peli era só meio tudo. Os olhos, sempre semi-abertos. A boca, meia boca; o Malboro enfiado no canto, não importava se aceso ou apagado - ele já nem sabia mais. Tinha metade cabelo, metade careca. Nem muito peludo, nem muito pelado. Os gestos eram lentos, o passo era arrastado, e a voz, a voz do tio Peli era aquele típico timbre de bebum. Já tinha só meia dicção.

Os numerólogos dizem que a gente vive em ciclos de nove anos. Meuprimero ciclo, portanto, deve ter acabado no exato instante em que o tio Peli teve a idéia de ir tomar sua cachaça no andar de cima. Lembro-me de ter sentido sua falta, mas era muito estranho, porque eu tinha uma verdadeira relação de amor e pavor com ele. O tio Peli me dava pânico; era assustador.

Enquanto todo mundo me dizia que arrotar era feio, aquele velho tio emitia sonoros arrotões, à mesa, e a turma toda caía na risada. Ai de mim, se eu fizesse parecido! Sem falar no pum, que chega a ser um parágrafo à parte.

Minha mãe dizia, minha filha, a gente faz pum é no banheiro. Mas eu nunca, francamente, nunca entendi o porquê. Se pum, mãe, é só um ventinho com cheiro de cocô, não é melhor soltar num lugar ventilado? No banheiro não é tudo fechado? Não, minha filha, o certo do pum é no banheiro. Então eu ficava horas imaginando o dia em que iriam inventar um vaso cuja descarga, em vez de água, soltasse um bocado de vento na bunda da gente. Aí, sim, o certo do pum seria no banheiro, porque a gente faria cocô no vaso da água, e pum no vaso do vento. Cada coisa leva embora a porcaria que pode.

E o tio Peli lá se importava com isso? Nada! O dele nem era mais pum; já era peido, mesmo. Na frente de todo mundo!, ele não dava a mínima. E, o mais curioso: ninguém ficava bravo com ele. Ai de mim, se fizesse parecido!

No dia em que levei um sermão da minha mãe, por ter dito uma mentira qualquer, o tio Peli chegou lá em casa com um presente: um pacote enorme de balas de goma. Que eu odiava. E ele perguntou, gostou do presente que o tio trouxe?, e eu respondi, é claro que não gostei, porque tenho nojo de balas de goma. Eu fui bem sincera, porque a mãe tinha dito para nunca mais mentir. Mas o tio Peli me deu um cascudo na cabeça, e mandou eu deixar de ser estúpida e mal educada, que ele nunca mais me dava nada. Olhei para a mãe, à espera de defesa, mas ela só riu... porque todo mundo ria do tio Peli, por mais malcriações que ele fizesse. E fazia muitas.

Passei aquele ciclo de nove anos sem entender o tio, e mais algum tempo sem me lembrar dele. A não ser quando enxergava um pacote de balas de goma, claro. Quando decidi escrever sobre ele, há alguns dias, voltei a pensar e tentar reunir tudo o que havia de tio Peli na minha lembrança. Foi quando tive a surpresa de, meio sem querer, enxergar um tio completamente diferente daquele que eu conheci.

O tio Peli está mais vivo do que nunca - foi o que eu descobri há poucos dias. Na verdade, a escavadeira que furou a minha infância com a morte dele não deixou só um buraco. Deixou buraco, areia e adubo. Que eu fizesse o que quisesse com aquilo.

Eu escolhi plantar um tio Peli aqui dentro, e nem havia percebido. Anos e anos depois da partida dele, resolvi furungar nas minhas gavetas internas, e dei de cara com a vivacidade daquele velho tio. Uma delícia de homem, que virou uma delícia de flor, que continua arrotando e peidando cá dentro de mim.

O tio Peli é, sem sombra de dúvida, o meu lado politicamente incorreto. Ele semeou irreverência nos primeiros nove anos da minha vida, e depois partiu, como quem diz, agora você resolve o que fazer com o que eu te deixei. Herdei o humor irônico do tio, e fui regando, com o passar dos anos, o velho que adoçou e assombrou a minha infância. Hoje, ele está mais moço do que nunca, e é outro homem; porque agora eu o entendo.

Os buracos nunca vêm de graça. São sempre passíveis de alguma plantação. Ainda que a semente fique adormecida durante ciclos e mais ciclos da nossa vida, um dia ela acorda, e ganhamos mais companhia. Neste momento, por exemplo, estou celebrando, tomando uma cachaça com o tio Peli. Acho que vamos varar a madrugada. E vamos partir somente juntos, quando Deus quiser; sabe lá onde vamos jogar nossa sinuca depois daqui. Deus é que sabe. Afinal, segundo a minha precoce teoria do vaso feito para pum, cada coisa leva embora a porcaria que pode.
Tragédia na orla - arrastão!
Bibi Da Pieve

Vão dizer que é mentira, cascata minha. Mas não é. E, dessa vez, eu tenho a prova - está aqui na minha frente; a minha carteira de habilitação, completamente enrugada. Estou, portanto, encarando-me com 98, 99 anos de idade. Até que sou uma velhinha simpática, mas acho que preciso dar um corte nesse cabelo. Até lá, terei tempo.
Terça-feira de sol, quase junho, Rio de Janeiro. Peguei as minhas coisinhas e fui à praia. Quase dez da manhã, e eu atirada na areia, toda relaxada, branca como folha de ofício, e nem te ligo.
Ouvir Nei Lisboa no walkman é uma redundância, porque o cara já tem uma voz que vai direto ao ouvido, parece que ele canta grudado na orelha da gente. E como canta, esse compositor porto-alegrense! E como compõe, esse cantor gaúcho! Mas eu, que sou exagerada, estava com o Nei enfiado no walkman, e o walkman enfiado no ouvido. Lá na praia, bem tranqüila.
Tudo bem, eu senti que a areia estava um pouco úmida. Bastante úmida, vá lá. Mas, juro, aquela umidade era uniforme, ia quase até o quiosque. Pensei que aquilo era coisa da ressaca do mar, e eu não tenho nada a ver com ressaca alheia, que já bastam as minhas. Achei que ele tinha brincado ali a noite toda, mas agora era a minha vez. Nunca imaginei o que estava por vir.
Eis que, musiquinha vem, musiquinha vai, o lado A terminou. O lado B é mais relaxante ainda, coisa boa. Virei o lado, e me virei também. A bunda pra cima, e vá Nei. Acordei cedo, hoje. Cedo demais; acho que estou com sono. E o Nei já dizia "cochila, cochila, imagina uma luz violeta, puxa um cochilinho..." puxei.
A tragédia estava prestes a começar; o chifrudo e seus capangas já enxergavam, pelo monitor do inferno, a cena que aconteceria cá comigo. Meus inimigos, se soubessem com antecedência, teriam comprado convites de camarote. Não importaria o preço; valeria a pena. E como.
A bela adormecida que vos escreve, então, teve o despertar mais sinistro de todas as suas encarnações nesta Terra. Sem exagero nenhum, posso dizer que uma puta de uma onda, literalmente, me abocanhou. Já imaginou, ser engolido por uma onda do mar, no meio de um sono ingênuo? E ouvindo Nei Lisboa?? Foi assim.
Sobressaltada, apavorada, levantei-me como pude, e aí começou a pior parte da guerra: tastaviando, ainda meio sonhando, saí em busca dos meus esparramados pertences. Avistei o walkman a uns quatro metros, e quis fazer bonito - saí no pinote, o passo largo, vem cá que eu te pego. Foi pior; na segunda pernada, enfiei o pé numa concha quebrada e me estabaquei no chão.
Bunda pra baixo, pernas pra cima. Foi bem nessa hora que eu resolvi olhar para os lados, calcular o tamanho do mico. Duas senhoras com cara de "eu avisei!", um cachorro com jeito debochado, uma menina gargalhando escancaradamente, e um cover do Ricky Martin. Aí, parei de calcular o estrago. Era o meu fim.
Mas não desisti de recuperar as minhas coisas, claro que não. Fui de quatro mesmo, que era mais rápido, àquelas alturas do campeonato. Aliás, fui de três, porque mancava do pé que a concha cortou. Imagine a cena.
O resultado do arrastão, pra encurtar a história, foi: um relógio, um par de chinelos, uma canga e um protetor solar - perdidos. O mar, definitivamente, levou. Não os pude recuperar.
O walkman, com a fitinha do Nei Lisboa, ainda consegui agarrar. Mas trouxe pra casa só de lembrança, mesmo, que o aparelho veio empaçocado de areia e água salgada, coitado. Minha sacolinha com a chave do carro e a carteira de habilitação, felizmente, recuperei também. Mas a carteira, como já disse, está mostrando uma previsão 3X4 daquilo que serei aos 99 anos.
Isto é, se eu chegar lá. Se eu tiver a sorte de escapar com vida. Porque, da violência, ninguém está livre. É muito perigoso ir à praia.