19 junho 2001

De macacos a cubos de gelo
Bibi Da Pieve

Ainda me lembro da decepção que me tomou quando vi, pela primeira vez, o mapa da minha cidade.
- Mãe, tá tudo torto!
- Como assim?
- Tá errado! O mapa tem de ser quadrado. Isso aqui não é o mapa; está cheio de riscos, tudo torto. As casas são quadradas, as ruas, tudo é quadrado. A cidade também tem de ser quadrada, senão não ia caber certinho.
A mãe disse que cabia, sim, mas sobravam algumas pontinhas. Achei medonho, morar num lugar onde sobravam pontas. Alguém tinha que dar um jeito naquilo.
Naquele tempo, eu ainda não sabia. Nem sonhava que, um dia, eu me sentaria em frente a um monitor quadrado, a escrever em linhas precisamente retas, sem precisar caprichar com a mão.
Tem gente que não se dá conta, mas estamos sendo verdadeiramente encaixotados. Por dentro e por fora, e por nós mesmos. Tudo o que se vê tem quatro lados, quatro pontas. Ou, então, é precisamente redondo - só pra contrariar.
De qualquer maneira, estamos fugindo, cada vez mais, das imperfeições estéticas. Os estilistas criam roupas quadradas, e embrulham mulheres retas, que desfilam numa passarela em forma de "T".
Nossos carros são quadrados. As ruas só não são quadradas porque são tão espichadas, que dois dos lados se perderam na distância. Mas ainda têm os outros dois; paralelos, claro.
Como ciranças diante de brinquedos, nos deslumbramos com a perfeição que começamos a produzir - em série! - há muitos anos. Mas as crianças crescem, e abandonam os brinquedos; nós, não. Continuamos, com os olhinhos fixos nas linhas retas, e esquecemos, vejam só, dos nossos próprios umbigos.
Imperfeitos.
Essa brincadeira durou gerações e gerações. Como se sabe, o ser humano tem uma capacidade nata de adaptação. É por isso que, embora ninguém ainda ouse falar nisso, estamos virando cubos.
Está muito na moda aquela tal de "ginástica natural"; nos jornais, na TV. As pessoas ficam imitando os movimentos dos bichos; pra lá e pra cá, rastejando, ou andando nas "quatro patas". O motivo disso está claro: é uma tentativa de evitar o encubamento da raça humana. Querem fazer com que voltemos a ser humanos de verdade, com direito a movimentos e traços curvos, tudo muito imperfeitinho. Ironia - o que nos sobrou de mais humano, hoje em dia, são os bichos.
Quando virarmos grandes cubos, não seremos mais gente. Seremos enormes cubos de gelo, naturalmente, que não existe gente perfeitamente quadrada. Por isso - ninguém nunca te contou, mas é verdade - você estala quando ousa se mover além do "normal". É o gelo, que começa por dentro, e vai acabar nos transformando em "icebergs" regularmente recortados. Sem pontinhas.
Outro dia, pensando nisso, e me sentindo internamente geladíssima, comecei a bolar um possível antídoto para esse enquadramento humano. Fomos nós que inventamos; cabe a nós, portanto, resolver a encrenca.
Modéstia à parte, já andei conseguindo bons resultados. O segredo é simples: parar de se deslumbrar com a perfeição inventada; começar a se derreter pela apaixonante imperfeição que nasceu conosco.
Pode ser qualquer coisa; pense em algo que derreta você. Uma mulher, uma canção, um gol de placa, uma onda, uma conversa franca. E vá se derretendo, aos poucos. Com o tempo, acustuma - e é uma delícia. Acho que ainda dá tempo, vamos desencaixotar a vida, e voltar a ser humanos.