29 dezembro 2001



Esta foto está em http://www.olivieranquier.com.br/

Se tem uma mulher feliz de marido neste mundo - além da minha mãe, é claro -, esta mulher se chama Débora Bloch. Tudo bem, a Marília Gabriela não conta, que aquilo nem é marido - é uma ostentação em perna e osso.

Olivier Anquier é o nome do maridão da Débora. Um francês de tirar o fôlego.

Já assistiram ao Dário do Olivier, no GNT? Não perco um. Com todo respeito. Trata-se de um programa culinário - acreditem se quiser, o homem ainda cozinha.

Cá estava eu, ontem, observando atentamente a explicação do Olivier acerca do fermento. Nunca tive tanto interesse pelo fermento antes. De uma hora para outra, o fermento tomou conta da minha noite. Ah, o fermento... (suspiro)

Dizia aquela doce criatura de qualidades redundantes, bem dentro da minha telinha, que o fermento é uma bactéria. "Um ser vivo, como eu e você". De repente, passei a enxergar as bactérias com outros olhos - tudo tem seu charme, não é verdade? Ah, a bactéria... (suspiro)

E o Deus da culinária prosseguiu: "Vocês sabem como é que o fermento faz o pão crescer? Pois ele se alimenta dos açúcares presentes na farinha. E, como tudo que entra tem de sair, o bichinho elimina o que comeu..."

Cocô de bactéria. Eis o princípio do crescimento do pão. Segundo o maridão da felizarda Débora, o bicho-fermento come o açúcar da farinha, e "libera" - para não usar outra palavra - gás carbônico. Isso mesmo. O excremento do fermento é - veja que amor! - gás. Não é lindo? (suspiro)

Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o pum da bactéria é que faz o pão crescer. Ah, o pum da bactéria... (suspiro)

Desliguei a TV, e fui dormir contando bacteriazinhas. Hoje, bem cedinho, fui à padaria e comprei meia-dúzia de pãezinhos franceses.

Ah, as metáforas da vida... enquanto a Débora saboreia um pão francês de cerca de 80kg, eu me contento esfarelando bactérias - e furando bolhas de pum com os dentes.

Não há nada mais romântico nesta vida.

*Notícia importante: agora, você encontra os pães do Olivier somente nos supermercados Pão de Açúcar!

28 dezembro 2001

Belém abaixo de zero

Hoje estava pensando nas vicissitudes da vida, quando recebi uma carta. Tudo bem, não foi carta - foi e-mail -, mas dizer carta é tão mais romântico. Se me permite a ficção, vou de carta mesmo.

O selo era de Belém do Pará, e o garrancho tinha o sotaque do desgraçado que ficou de telefonar, e nunca mais. Vicissitude usa rabo-de-cavalo - pensei -, e manda carta. Como se isso me bastasse.

Meu filho, feliz ano novo por quê?

Eu acho de uma graça certos homens do Pará. Aliás, alguns rapazes que usam rabo-de-cavalo deveriam pensar, pelo menos duas ou três vezes, antes de enviar e-mails do tipo “corrente positiva” no fim do ano.

Pronto, esculhambei com a minha ficção. Não estou nos meus dias úteis. Não era nem um e-mail pessoal; era amplo e irrestrito. Eis a verdade, dura e completamente virtual.

O sujeito foi passar uns tempos em São Paulo, e foi lá que nos conhecemos. Em território neutro. Essas histórias nunca acabam bem, justamente porque nunca acabam. Não há uma lágrima, uma briga, não há o pé na bunda tradicional. Um belo dia, cada qual retorna ao seu local de origem, e o romance fica parecendo um ponto suspenso no tempo; uma coisa do além, algo que nunca aconteceu, de fato, nesta dimensão.

A tragédia é que o cheiro do xampu dele resiste à Via Dutra, e nem o calor do Rio de Janeiro derrete a minha sádica memória.

Por outro lado, parece-me que os paraenses são seres desmemoriados e insensatos, criaturas geladas que se aproveitam do espírito natalino e ferem o coração dos outros a facadas cibernéticas. E-mail coletivo, a essa altura, já é demais. Cúmulo da frieza.

Pensei em todas as maneiras possíveis de responder à altura ao desaforo; optei pelo seguinte texto:

“Olá, somos gratos pela sua preferência. Aguarde um momento, já lhe desejaremos um feliz ano novo. O seu e-mail é muito importante para nós”.

Se não o Pará inteiro, com essa, espero congelar – no mínimo! – Belém.
Natalzinho bem chuvoso, este. Rio, 24 graus. Pode?

Hoje é o dia. Eu quase posso tocar o silêncio.
Tudo que vai deixa o gosto, deixa as fotos - quanto tempo faz?
Deixa os dedos, deixa a memória - eu nem me lembro mais.


O Panetone não acaba, e tem um vinho italiano na geladeira. Periga eu me
perder no meio daquelas frutas cristalizadas, e acabar até me colorindo um
pouco. Amanhã é dia de batente, mas nem parece. E o vinho é tinto, me
parece. Podiam cristalizar o feriado, também.

Eu fico à vontade com a sua ausência... eu já me acostumei a esquecer.

Sonhei que tocava contrabaixo, enveredava pelos slaps da vida, e três (das
cinco) cordas rebentavam ao mesmo tempo. Inédito! - três cordas do baixo
rebentando juntas. Ainda bem que isso só me acontece em sonho.

7 dias para 2002...

A música que eu tocava - no sonho - era Mercedita. A família Ferrettitocava junto, e o Renato Borghetti fazia uma participação também. Quem
cantava era uma senhora de cabelo enroladinho, pele escura, olhar meio
sofrido. Cantava muito bem, cantava doce.

Depois que praticamente debulhei o meu contrabaixo, fiz cara de decepção,
larguei o instrumento no chão e desci do palco. Parece que um outro
baixista iria me substituir - tinha um Yamaha de 6 cordas, se não me
engano. Mas saí correndo, chorando, parecia que o mundo tinha desabado. Nem
quis ver o fim da festa.

Vai ver eu estava era de olho no vinho tinto, tanto que acordei.

Italiano!!

22 dezembro 2001

O Far Up, ontem à noite, estava ABARROTADO de gente. Foi o último dia da temporada - aliás, que delícia de temporada! Vai deixar saudade.
Pô, Luis, faltou tu... ***

Não vou passar o Natal em família, mas em banda. Não haverá peru, porque a cozinheira aqui é vegetariana, e os outros que engulam a minha pizzazinha bem mais ou menos.
Alguém quer encarar? Aceitamos reservas, até porque a banda é pequena. Tecladistas, percussionistas, sopristas e demais istas serão aceitos - mas só para o Natal. Depois, segue o power trio velho de guerra.
***

Sugestão de presente de Natal: CD do Nei Lisboa - Cena Beatnik. Só tenho ouvido isso e Enya, nos últimos tempos. Ah, e Cesar Passarinho, claro.
***

Ho Ho Ho, a vida é bela. E tenho dito.

20 dezembro 2001

"Não sou o dono do mundo, mas sou filho do Dono."

Acabei de ler essa, num adesivo grudado na bunda de um Golzinho branco. Quase morri de rir. Já conhecia, mas sabe quando te pega de jeito? Tem coisa que pega a gente de jeito, e tem coisa que não pega agora, mas vai pegar daqui a pouquinho. Loucura, isso de pensar em momentos.

Passou o meu espírito suíno. Entrei no clima. Imagine uma mensagem de Natal assim: "UM PUTA ANO PRA VC. Afinal fizemos quase tudo por merecer." Isso não dá uma música?? Tem que ser em acorde menor, pra enfatizar a melancolia do "quase".

Quase é brabo; pior que nada.

Uma balada em ré menor, é isto. Não! Já sei: uma QUASE-balada. Quer coisa que derrube mais do que uma QUASE-balada? Não chega a ser triste, a desgraçada. Tem um quezinho saltitante, lá no fundinho, sugerindo que "hope has a place in a lover's heart".

As quase-baladas sugerem. E as milongas sul-gerem (o que é ainda pior).

Feliz Natal a todos os filhos do Dono do mundo, de coração, em franco ré maior. E que 2002 seja uma nova fase - com MAIS tudo, e MENOS quase.

19 dezembro 2001

Mas nós devemos estar todos muito bem de vida, mesmo, neste país. Sim, porque ninguém mais quer encarar o batente. Estão percebendo?
O Rio de Janeiro, pelo menos, está engarrafado até as bordas. Faz um calor do cão, e o clima é de festa geral, ampla e irrestrita.
"Me liga depois do carnaval" - é a frase mais constante.
Onde é que está a fortuna dessa gente, que eu não vejo? Deus, ainda nem chegou o Papai Noel!!!
Estou indignada, me perdoem a acidez. Nada funciona, tudo é fila, e a gente aqui, latindo para economizar cachorro.
Vou parar por aqui, que vocês já devem estar sentindo que meu espírito está mais suíno do que natalino. Fui. (Trabalhar).

17 dezembro 2001

Estou virada numa marqueteira virtual. Vamos lá.
Pessoal do Rio, essa semana (de terça 18 a sexta 21) tem uma temporada de Ana Lógica no Far Up - COBAL do Humaitá. R. Voluntários da Pátria, 448
- loja 10, sobrado. Tel: 2537-2421.


H o r á r i o s:
Terça, dia 18 : 21:30 h
Quarta, dia 19 : 21:30 h
Quinta, dia 20 : 22:30 h
Sexta, dia 21 : 23:30 h

Apareçam!

16 dezembro 2001

Também, não precisava chover tanto.
(Eterna insatisfeita)

Ontem, no Alternativa Saúde - da Patrícia Travassos -, uma moça chamada Marta Viana, terapeuta metafísica, falava a respeito de TPL: Transmutação dos Padrões de Limitação.
Gente, que coisa interessante.
Segundo ela, o nosso campo energético se forma desde o momento da concepção até os sete anos de idade. O sistema neurológico, idem.
A criança, até os sete anos, é pura absorção. Tudo o que os pais (ou pessoas mais próximas) vivem durante esse período é "puxado" para dentro da criança, e aquilo vai se tornar um bolo energético que acompanhará até o final dos seus dias.
Transmutação dos padrões de limitação, pelo que pude entender, é uma terapia que visa a auxiliar as pessoas a saírem desse vício involuntário que é causado pela repetição eterna dos mesmos padrões de comportamento. Exemplo: o sujeito escolhe sempre as mesmas situações na vida, e se depara sempre com as mesmas dificuldades, sem entender por quê.
A resposta pode estar lá na formação do campo energético, e a solução pode ser a tomada de consciência e a limpeza da aura (as duas coisas estão ligadíssimas).
Tudo isso é interessante, mas não consigo deixar de pensar, acima de tudo, no seguinte: quantas pessoas, no mundo, têm noção da responsabilidade que é criar um filho, muito além de fraldas e convênios com médicos e farmacêuticos?

15 dezembro 2001

O ceú se vestiu de cinza, está fresquinho no Rio de Janeiro. Até venta. Deus ouviu as minhas pressas.
Demorasse muito, acho que eu fugiria para os pampas - como se lá estivesse menos abafado. Não importa. A memória é que refresca.
Ia passar o Natal no sul; não vou mais.
Vai fazer quatro anos que a gente mora aqui.
Quando a gente se afasta, as lembranças começam a aparecer, em série, nos sonhos, em frente ao espelho, nas esquinas, nos cheiros. Lembrei tanta coisa que nem tinha mais importância, achei que não teria cabeça para guardar tanto. Tive.
As novidades vão respingando, dia após dia, mas as antigüidades brotam do subsolo inconsciente, de um jeito quase anti-ético.
Gotas de presente, já notou? Momentos.
Parece que o passado sempre é mais sólido. Brotos de memória.
Besteira, na verdade. Tudo é tão nada sólido... passado, presente e futuro são apenas estados diferentes das mesmas partículas - é só ar.
Vai ver que é por isso, então. Venta no Rio de Janeiro: o arzinho anti-ético resolve balançar os meus cabelos sagitarianos justo nesta época do ano.
E a minha filosofia vive de brisa.
Eu que me vire.

Não resisti. Saudade.

14 dezembro 2001

Acordei com o cara martelando ali em cima. Obras no apartamento. E o sujeito é tão rímtico com a tortura, que eu sonhava com um metrônomo gigante me obrigando a tocar baixo no andamento da canção. Ai, que neura, não posso lembrar.

(Será que esse sonho tem a ver com Saturno - o planeta do tempo -, ou só com o martelo mesmo? Jung explica.)

A esta hora da tarde, o rapaz já está meio descompassado. Deve ter almoçado, vai que tomou até um chopinho, taí, perdeu o tempo. Músico que toma umas e outras, não raro, atravessa tudo.

Tínhamos um baterista, nos tempos jurássicos da banda, que ia atrás das palmas do público. Estivesse o público animado, andava a bateria atrás, a mil por hora, e deixava a banda toda suando para acompanhar. Música de quatro minutos, por exemplo, terminava em dois. E o repertório era curto, de modo que começávamos a repetir tudo, certa feita, quando a coisa apertava.

Vê como são as coisas; sempre se aprende. Foi com ele que aprendi a segurar o ar lá dentro, muito ar, muito tempo. Técnica vocal, que nada. Arrume um baterista desse tipo meio afoito e influenciável, que você aprende rapidinho (literalmente) a cantar uma música inteira respirando só duas vezes: no início e no fim.

E não precisa se preocupar com troca de figurino, porque começa-se a cantar de uma cor (a natural), e termina-se (invariavelmente) azul. Ou roxo, no caso das canções mais extensas.

Acho que o vizinho daquele baterista não fazia obras no apartamento.

13 dezembro 2001

Decidido: o nome do meu cágado é Vi. Ontem ele me veio com essa:
- My name is Vi. Vi Torugo.
***
E o pessoal que faltou ao show da Ana Lógica, na terça, não tem nada a declarar? Só sei que me diverti. No próximo, levo o Vi e coloco em cima do meu amp de baixo. Para ir se acostumando à Vi-bração do instrumento...
***
Ainda não aprendi a inserir um link aqui nesta coisa. Ando muito lenta com essas situações práticas. São as Vi-companhias, desconfio.
***
Que nada. "Tô me guardando pra quando o carnaval chegar" (Chico - o Buarque, claro.)
***
Transmissão virtual de pensamento. Recém reclamei da não-manifestação dos ausentes no show de terça, chegou aqui um e-mail de um ausente arrependido. Fizeste falta. Aliás, fizeste pênalti.

10 dezembro 2001

Estou faceira com as visitas ao meu BiBlog - obrigada a vocês!

Aproveito a deixa, e os convido para o show da minha banda (Ana Lógica), amanhã, terça-feira, no Far Up - Cobal do Humaitá, Rio de Janeiro. R. Voluntários da Pátria, 448 - loja 10, sobrado. Tel: 2537-2421.
O show começa às 21:30, cedinho mesmo.

Convém reservar uma mesinha, tá?

Não deixem de falar com esta baixista/vocalista que aqui escreve.

Para o pessoal que sempre me pergunta sobre o site: a Ana Lógica ainda não tem site, mas já tem a equipe que eu pedi a Deus. Estamos aguardando o projeto gráfico do CD, essas coisas são assim mesmo. Creio que, em breve, abriremos as portas virtuais, e serão todos muito bem-vindos.

Diquinha de hoje: www.carlosmaltz.com

09 dezembro 2001

Não sei se foi a Enya, na vitrola, ou aquele mamãozinho bem maduro e doce que eu achei na volta da praia. Ou será que foi o clima, mesmo?

O fato é que há alguma coisinha muito boa pairando sobre as nossas cabeças. Passamos o ano todo trabalhando; passou voando. Agora eu me pus a curtir um pouquinho, com mais responsabilidade, dar um solavanco nas idéias e tomar consciência da dinâmica do universo.

Nada como um bom dezembro no Rio de Janeiro, com o sol queimando a cuca e derretendo os conceitos criados até novembro.

Como é que pode, o mamão deixar de ser verde? - por exemplo. Se tem fruta amadurecendo, também tem cabelo mudando de cor, e também tem unha crescendo, isso deve ser algum sinal muito expressivo da natureza. Do tipo: pega a tua pranchinha, e te deixa levar.

Mania que a gente tem, às vezes, de querer ancorar em qualquer ponto do tempo ou do espaço, fincar os pés, e achar que é durão. Daqui não saio, daqui ninguém me tira. Confundir estabilidade com mesmice: sou assim, e pronto. (Para não ter o trabalho de mudar?)

"O tempo é infinito; a cronologia é que é limitada".

Cronologia é querer contar com quantas chegadas do Papai Noel se faz uma canoa, ops!, uma vida. Tempo é o marzão imenso, infinito. Não existe um número certo de Papai Noel; aliás, a contagem do bom velhinho só faz dar peso à canoa, e é assim que muita gente acaba afundando.

Imagine um Papai Noel, louco de faceiro, surfando em cima de uma prancha enorme, numa onda do Hawaii. Observar o tempo sem se prender à cronologia. Perceber o amadurecimento do mamão, e utilizar isso a favor: vou comer exatamente quando estiver mais doce.

Sem fazer força nenhuma, dá para sacar a hora mais doce de tudo na vida.

O CIO DA TERRA - Milton Nascimento e Chico Buarque
Debulhar o trigo
Recolher cada bago de trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão
Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de mel
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, propícia estação
De fecundar o chão.

05 dezembro 2001

O Luis Saguar sugeriu Torugo.
Torugo, Luis?
E não é que é um interessante nome de cágado budista com dupla personalidade? Gostei da sugestão!
Alguém dá mais?

04 dezembro 2001

Vamos dar nomes aos cágados.

Ganhei um cágado de pelúcia - presente de aniversário -, e o bicho ainda não tem nome. Mas o pior é que a Melissa, que me deu o cágado, diz que quem tem nadadeira e olho puxado é tartaruga, muito tartaruga - e não cágado.

Tentei convencer o animalzinho, mas está difícil. Ele diz que é um cágado, ele acha que é um cágado, e pronto, e ainda argumenta que o olho puxado é questão de origens orientais. Cágado budista, ainda por cima.

Alguém tem sugestão de nome para o meu cágado? Se tiver, por favor me mande por e-mail - bdapieve@centroin.com.br

Não posso continuar dormindo com um cágado anônimo.

02 dezembro 2001

Com todo respeito à cutícula


Bíbi Da Pieve


Sabe a cutícula? Eu fico pensando.

Depois dizem que eu penso demais, mas a cutícula da gente é coisa de se
pensar, não é? O nome já diz: cu-tí-cu-la. Veja bem!

Toda proparoxítona tem um quezinho de não-me-toque: prótese. Apêndice.
Mesóclise. Átila (nome próprio, então, chega a ser metido a besta, mesmo).

Úrsula Ávila. Já imaginou o tamanho da perua? E a cutícula dela, então?

Eu acho uma falta de respeito, fora de brincadeira, a pessoa querer mexer
na cutícula alheia. Cutícula é coisa muito pessoal. Não bastasse, ainda
inventaram uma ferramenta de nome insultante: alicate de cutícula. Absurdo.

Alicate, no meu tempo, era para cortar arame, fazer cerca. Vê lá se a mão
do rapaz que lidava com o alicate iria ter tempo de criar intimidades com
cutículas e demais proparoxítonas pedantes?

A cutícula é algo só da gente; não tem de haver uma segunda opinião. As
pessoas estão se perdendo um pouco nos termos, e até nas vias de fato. Não
se pode nem querer privacidade entre a própria unha e a carne, que o
sujeito já é considerado grosso, anti-social.

Onde raios está escrito que eu devo permitir que me cutuquem a cutícula
com um alicate que eu nunca vi mais gordo? Para seu governo, o último
alicate que me invadiu os dedos arrancou sangue, e não estou de brincadeira.

Assim é que a situação vai degringolando. O povo vai permitindo. Depois do
alicate de cutícula, aparece um martelo de sobrancelha, como quem não quer
nada. Quando vê, pregam a sua língua no céu da boca, e não adianta nem
abrir o berreiro - que é tétano na certa.

No afã de evitar uma corrosão generalizada é que eu imploro: cuidem muito
bem das suas cutículas, e tirem o olho da proparoxítona do vizinho.

Úrsula Ávila, por exemplo, se não fosse para ser tão pomposa, teria
nascido Berê, Cacá, ou outra oxítona qualquer. Cutícula, da mesma forma -
se não fosse coisa séria, teria vindo ao mundo com outro nome. Talvez cocô.

No mais, cada qual que se entenda com suas próprias tônicas, acentuando o
que achar que deve, e se identificando com a sílaba que lhe sorrir mais
simpática.

De minha parte - com todo respeito às cutículas dos dedos e às Úrsulas da
vida -, sou muito mais o bom e acessível cocô da Berê.

Eu estava me referindo a www.renatoborghetti.com.br
Ainda não estou me entendendo suficientemente com esta máquina...
É uma sacanagem, mas vá lá:
Tudo muito bonito, mas é a terceira vez que eu me levanto da cadeira num pulo, empolgada, e não consigo sequer concluir o giro da prenda. Fala sério, a introdução da página é bem intencionada, mas passa muito rápido, pô!!!
Quem é o webmaster do gadelhudo?
...
Mas visitem, visitem.
Este é um Blog de varaliedades não vestíveis.
Varaliedades são variedades penduráveis no varal (vide figura acima).
O que difere varaliedade de roupa molhada é que a roupa, quando seca, é vestível.
Varaliedade, não. Quando seca, é feito folha de árvore: cai.
Penduro aqui todas as varaliedades que julgo blogáveis, dizíveis, tragáveis (ou nem tanto assim).
Uma vez que cai no chão, tudo é confundido com esterco mesmo - o que muito me agrada, porque é sinal de renovação. Na natureza, tudo se transforma.
Minhas varaliedades não vestíveis são, como toda cousa deste mundo, totalmente merdáveis.
E viva as leis da natureza, meu rei.

01 dezembro 2001

Valeu, Me!!!!!
Agora só falta me ensinar a colocar figura (foto) aqui... tou tentando há tempos, mas não consigo. Sabes?
Gente, vam'colaborar.
Aceito dicas de sites, com flash e musiquinha. Agora estou podendo.
Está um dia cinzento e delicioso no Rio de Janeiro. Chega de derreter os gaúchos, né, Pai do céu?
(Té parece)
Não estou para muita conversa, minha irritabilidade está batendo lá no teto, e não é nem TPM.
Gente, vam'colaborar - já disse.
Ontem ouvi aquele disco do Renato Russo cantando em italiano, que transforma irritação em choradeira, e depois entrei no carro, a luz da (falta de) gasolina acendeu, a choradeira se transformou em preocupação, saí na rua, a preocupação se tranformou em medo, parei no sinal, o medo virou pânico, gritei, o coiso ficou verde, acelerei, o grito sentiu o vento batendo na minha testa e se transformou em música. Inevitável.
Cantei até chegar em casa. Em italiano - equilíbrio distante. Idioma desconhecido. Mico. Mas o carro é meu, a goela é minha, tá olhando o quê?
Se eu botei gasolina?
Me dá o dinheiro, que eu ponho.
Tá olhando o quê, ainda, cara-pálida?
Esperando eu concluir o texto?
Tó, conclusão:
eu acho que a irritação é mera questão de falta de combustível, a bem da verdade. E o Renato Russo é um furo no tanque - só faz pingar mais ainda.
Desperdício?
Desperdício é andar por aí sempre com o tanque cheio. Cadê graça? E cadê ar???
Muito preenchimento sufoca. Tem de haver uns buracos. Lágrima e gasolina, é tudo combustível. Tem de vazar.
Precisando de uma traça, Renato Russo é o que há.
Fui.

28 novembro 2001

Estou de mudança, tá sabendo?

Micro velho para micro novo. Um caos. Minha vida está toda armazenada no HD ao lado, e este computador aqui mais parece um pastel de vento; windows sem vista para o mar, para coisa alguma. Ninguém merece.

E o teclado, então? Sabe quantos segundos eu levei para achar o til do então? Então, então, então, então... (treinamento, pode? Pareço um bebê da informática, a essa altura da vida.) Quase meto as chaves pelos parênteses, agora há pouco.

Mudança é isso mesmo. Vou levar uns dias até me habituar à nova rotina. Mas preciso mobiliar este micro modernoso, antes que eu enlouqueça de vez. Sou pobre - não consigo viver com muito espaço, nem no HD. Meu negócio é esbarrar; do contrário, me perco.

É favor que os amigos me mandem fotos e textos, de modo que eu vá enchendo a casinha nova, e não me sinta muito só. E-mail é como imã de geladeira: quanto mais, melhor.

Por enquanto, era isso. Vou continuar na lida, aqui, arrastando alguns pedaços da vida para as janelas novas.

Mas não tudo, que é areia demais pro meu disquetinho.
Alou... testando...
Não é possível! Será que isto vai funcionar a partir de hoje?
Grande Lori, que me emprestou um micro novo! ADEUS 3.11 !!!!!!!!!

03 novembro 2001

30 setembro 2001

Engarrafados na Nossa Senhora
Bíbi Da Pieve


Tive de ir a Copacabana, num domingo à noite. Dirigi até lá, e, assim que cheguei no bairro, o trânsito parou.

Quarenta minutos depois, quando entrei na R. Nossa Sra. de Copacabana, descobri: havia uma procissão. E eu estava engarrafada na Nossa Senhora.

Lentamente, fui seguindo aquela multidão de fiéis. Não havia outro caminho possível para mim, a não ser perseguir a imagem da santa, e rezar para não chegar tão atrasada ao meu compromisso.

Os fiéis, animadíssimos, iam cantando - "quem é que vai nessa barca de Jesus?" -; como se eu tivesse alguma opção.

Aproveitei, rezei o que eu sabia e o que não sabia. Pedi perdão pelos pecados cometidos, bem ali, em meio àquela atmosfera religiosa regada a monóxido de carbono e maresia.

No início, a situação até parecia sustentável. Mas, com o tempo, fui me vendo dentro de um cenário absurdo, quase surreal; alguma coisa cinematográfica ia tomando conta daquela realidade. A partir de então, os fatos viraram cenas:

Cena I - Lá pelas tantas, enquanto a multidão vai louvando a Deus, aparece uma sirene desesperada, de uma ambulância que também está ali, conosco, engarrafada na Nossa Senhora.

Cena II - Mas os fiéis não arredam o pé. E ainda suplicam: "Senhor, levai as almas para o céu!"

Cena III - Eu fico pensando que, assim, eles estão mesmo prestando um grande auxílio a Deus; naquela ambulância engarrafada, certamente deve haver uma alma prestes a decolar. Sobretudo se não chegar logo ao hospital.

Cena IV - Num muro grande, à minha esquerda, vejo um cartaz: "Tarô e búzios. Trago a pessoa amada em três dias."

Cena V - Na sarjeta, alheio à multidão, ao tarô e à sirene, um mendigo devora um pedaço de pão. E só.

Estamos, todos nós, engarrafados na Nossa Senhora. Não achei imagem mais apropriada para representar a nossa realidade do que uma procissão no asfalto duro, na decadência evidente de Copacabana.

A multidão que segue a santa é a mesma que ignora a prostituição e a miséria, e também é a mesma que se desespera com a decadência. Porque o desespero é comum a todos.

Somos cartomantes, prometendo soluções rápidas; somos mendigos, comendo o pão que o diabo amassou; somos fiéis, pedindo piedade divina; somos prostitutas, somos assaltantes, somos vítimas e somos cegos, porque estamos completamente perdidos, loucos de desespero: somos uma enorme sirene, gritando em cima de uma ambulância parada, dividida entre a fé e o caos, sem saber se vai ou se fica, se ainda há tempo, saída, salvação.

Enfim, peguei uma carona na barca de Jesus, e cheguei muitíssimo atrasada. Mas o problema não está nele, e muito menos na Nossa Senhora. O problema está na falta de opção, que acaba obstruindo os caminhos - quando a fé engarrafa as vias, é sinal de que há muita louvação e pouca ação.

E o Senhor há de convir comigo que, se continuarmos aqui parados, a tendência é afundarmos cinematograficamente em substâncias mal-cheirosas: isso, sim, seria o fim do mundo em 36mm.
Sobra homem no mercado - parte II
Bíbi Da Pieve



A Mariana tinha conhecido o Antônio na seção dos congelados, no supermercado, e jurava amor eterno.

Tinha até uma tese, que ia virar livro: sobra homem no mercado. Segundo a pesquisa, o principal ponto de aglomeração de material masculino disponível era, justamente, o supermercado.

O príncipe encantado estaria, veja só, bem na frente de um freezer, escolhendo o sabor da lasanha. Bastaria um pouco de intuição, e a moçoila esbarraria direto no homem da sua vida, como quem bate o olho e aponta - enfim, encontrei o atum em água e sal!

Mas, infelizmente, a Mariana não deu muita sorte. Veio me contar, meses depois de ter conhecido o Antônio, ex-homem da sua vida, que não haveria mais casamento algum.

- Não vingou! - ela fez uma cara de quem estava mais preocupada com a derrota da tese do que, propriamente, com o fim do Antônio.

Senti que o problema era mais teórico do que sentimental, e peguei leve. Aliás, aquilo era quase um caso acadêmico.

Mariana que se preze, como é sabido, nasceu lá pelo final da década de 70, com a mãe ouvindo Geraldo Vandré, e Belchior na voz da Elis Regina. E com isso não se brinca.

Uma vez ferida a intelectualidade da Mariana, a casa vem abaixo. Ou ela não se chama Mariana.

- Eu sinto muitíssimo, amiga. Nem sei o que dizer...

- Não se preocupe, eu vou ficar bem.

- Olha, eu sou péssima em conselhos. E nem somos assim tão íntimas.
Mas pode se abrir comigo. Claro, não precisa entrar em detalhes. Mas, afinal, o que há de errado com esse Antônio?

- Beija gelado e duro. Para lasanha congelada, só falta beijar à bolonhesa.

- Tão ruim assim?

- Pior. Na cama, então, é um fiasco.

- Credo!

- Fora isso, tem mania de grandeza. Não sabe ouvir. Repete sempre a última frase, pra ganhar tempo pensando em outra. Aperta o tubo de pasta de dente bem no meio. Pergunta "entendeu?", fica estressado no trânsito, batuca na mesa, vive com pressa. E cutuca.

Cheguei a ficar sem jeito, tamanha a desenvoltura da Mariana para debulhar a intimidade do pobre Antônio, assim, na minha frente. Parecia até que ela tinha catalogado os defeitos do ex-príncipe, pelo modo prático e eficiente com que discorrera sobre eles.

Quis mudar de assunto rápido; perguntei se, então, ela tinha desistido da tese e do livro.

- O quê? De jeito nenhum!!! O livro já está pronto, a tese segue valendo. Só porque não deu certo comigo, não quer dizer que não funcione com as outras pessoas. Sobra homem no mercado, e vai continuar sobrando! Não abro mão do meu livrinho, não!

- Mas você não se sente culpada por publicar uma tese que não pode comprovar? E se todas as Marianas se derem mal, como é que fica? O que é que você vai escrever, por exemplo, no prefácio desse livro?

- O Antônio é o prefácio. E depois não digam que eu não avisei. Pronto, isso é o máximo da minha honestidade literária!

- Que horror! Não acha que já está exagerando?? Você namorou com esse cara quase meio ano, e agora vai expor toda a intimidade do sujeito nas primeiras páginas de um livro?

- Tolinha. Namorado, mesmo, ele foi durante uns três dias. Depois do centésimo "entendeu?", o Antônio deixou de ser sujeito, e passou a ser mero objeto da minha pesquisa. Minha mãe já dizia: tudo bem, o amor é lindo, mas alguém tem de estudar aqui nesta pocilga!!!

A mãe da Mariana largou tudo, e foi exercer o seu jornalismo lá na África do Sul. O marido - que já é o quarto, depois do pai da Mariana, que morreu jovem - ainda está tentando achá-la. Quando conseguir, pretende trazê-la de volta à pocilga, doce pocilga onde viviam.

05 agosto 2001

Defeito é defeito
Bíbi Da Pieve

Tenho ouvido algumas pessoas se referirem às próprias virtudes como se defeitos fossem. E vice-versa.

- Tenho o péssimo hábito de persistir em tudo o que eu quero, até o fim. Ai, como eu sofro por isso. Nunca desisto! Até que consigo. Mas é um defeito, eu sei, tenho consciência disso.

- O meu pior defeito é ser prestativa demais. Impressionante, as pessoas acabam extrapolando, porque sabem que eu nunca digo não. E é verdade, não adianta, eu sempre acabo dando um jeitinho de ajudar os outros... que defeito horrível, mas, fazer o quê? Sou assim, tá em mim.

- Tá vendo esses meus enormes olhos azuis? Que defeito horrível... ninguém presta atenção no que eu estou dizendo, nunca!

E por aí vai. Garanto que você já ouviu esse tipo de "confissão", várias vezes, principalmente dos amigos mais próximos.

Ou será que você também faz isso?

Há duas maneiras muito comuns de "assumir" defeitos: uma delas é essa, acima citada. A outra, o famoso "pedir elogio":

- Ai, como estou gorda...

- Que isso!, olha aqui, a calça está até folgadinha! Deixa de ser boba!

Enfim, sinceridade, que é bom, nem pensar. Depois, reclamamos das dificuldades nas relações interpessoais.

A humanidade está cada vez mais hipócrita, e sequer assume a culpa. Nós, brasileiros, reclamamos "do brasileiro" - como se ele fosse uma terceira pessoa.

Aquela mulher que se acha gorda, lá no fundinho, se orgulha de não ser uma tábua. Mas trata as qualidades como defeitos, e os verdadeiros defeitos - ela é egocêntrica! - como qualidades: ela se orgulha da "boa autoestima", e ainda fala mal da vizinha, que, além de ser uma tábua, ainda não se gosta.

- Você viu? Ela não passa nem um batonzinho!

Todos nós somos especialistas no batonzinho alheio. Se é vermelho demais, tá carente; quer coisa. Se é de menos, não se gosta.

A psicologia de boteco tem dúzias de capítulos referentes a bundas, batonzinhos e trejeitos. Dos outros. Sempre dos outros.

Se houvesse um pouco mais de transparência nas cabeças modernas, talvez tudo ficasse menos complicado. Inclusive o casamento.

Ele reclama, por exemplo, que ela não consegue dizer por que ficou chateada e brigou com ele. Mas é meio difícil - ela reclama - falar com uma ostra.

Volta e meia, como boa ostra, ele larga uma pérola. Aí ela se derrete, mas, horas depois, ele reclama que ela já está grudenta demais; ela então fica revoltada, ele não sabe por quê, pergunta, ela não responde, e ele se fecha como uma ostra. De novo.

Quando estão fazendo as pazes, às vezes, ele até assume que é muito fechado. Mas, na verdade, orgulha-se de ser reservado. E quer morrer assim.

Ela, com jeitinho, assume que poderia ser mais direta e objetiva. Mas, no fundo, pensa que a culpa é do animal insensível, que já está com ela há dez anos, e ainda não consegue adivinhar os seus pensamentos.

Defeito é defeito, e ponto final. Defeito é pessoal e intransferível.

Eu, por exemplo, pinto as sobrancelhas com lápis marrom, e fico me iludindo, pensando que assim você não vai reparar nas manchas que eu tenho nos dois lados do rosto, próximas às orelhas. Besteira. Não adianta disfarçar os buracos da bochecha colorindo a sobrancelha.

Não me leve a mal, mas, se você me disser que tem algum defeito, seja lá qual for, eu vou concordar. Não espere que eu vá dizer que a calça está folgadinha, porque não está. Já chega de tanto rodeio, tanto disfarce. Não vou compactuar com a hipocrisia.

Até porque este é meu maior defeito: sou muito sincera. Modéstia à parte.

22 julho 2001

Sobra homem no mercado

Mariana é bem nome de menina que nasceu no final dos anos 70, início dos 80. O que tem de Mariana com vinte e poucos, hoje em dia, não é
brincadeira. As Marianas, atualmente, são mulheres jovens, bonitas, charmosas, simpáticas e solteiríssimas.

Mariana meio ruiva, com sardinha no nariz, então, é coisa típica. Eu disse meio ruiva. Castanho-avermelhado, o cabelo. Se for totalmente ruiva, aí já pende mais pra Viviane, Elisabete, Solange (se bem que Solange é mais anos 70, mesmo).

A Mariana, de fato, é só quase ruiva.

Pois fui almoçar com a Mariana, que eu não via há quatro anos. E ela continua jovem - que Mariana, de verdade, só vai começar a envelhecer lá por 2030. E solteira. Mas em vias de reverter o quadro.

- Conheci o Antônio no mercado!

Não entendi nada. Primeiro, que Mariana casar com Antônio já é de se estranhar. Mariana casa com Marcelo, Guilherme; no máximo, Maurício! Esse Antônio tá me cheirando a coisa mais antiga.

- Antigo, coisa nenhuma! O Antônio vai fazer 39, mês que vem. Estou com 26, olha aí, não dá nem quinze anos...

- E conheceu o quarentão onde, mesmo?

- Quarentão, coisa nenhuma! O Antônio é um guri! E, de mais a mais, hoje em dia, não dá pra ficar escolhendo muito, não...

A Mariana diz que homem é peça rara no mundo atual. Até os 20 anos, ela me conta, era uma festa só. Saía, beijava na boca, e achava tudo uma maravilha. Não se preocupava com os Marcelos, nem com os Guilhermes, que dirá com os Maurícios. Esnobava todos eles.

Só que, depois dos 20, a coisa foi ficando feia. Meia-dúzia de Marcelos viraram Marcelas. Os Guilhermes foram encontrando as suas Cíntias; os Maurícios, casaram-se com as suas Patrícias. E a Mariana foi sentindo que alguma coisa estava mudando. Para pior.

- Menina, nos últimos anos, é um tal de salve-se quem puder, que só vendo! Quando cheguei aos 23, depois de muito relutar, resolvi partir para uma pesquisa mais profissional. Encarei o assunto com seriedade, mesmo!
Levei três anos, catalogando daqui, experimentando dali, mas valeu a pena: finalmente, achei o Antônio!

Quando perguntei que tipo de pesquisa ela havia feito, não acreditei no relato quase científico que a Mariana me fez. Não era brincadeira; ela tinha se tornado uma expert no assunto.

Três anos depois de entrar no mundo profissional da garimpagem de homens disponíveis, minha amiga concluiu a frase irônica que define, afinal de contas, onde é que eles estão: "sobra homem no mercado". Ela vai lançar um livro com esse título, inclusive.

Milhares de Marianas irão comprar o livrinho da minha Mariana, e descobrirão, como eu descobri, que a moça não brinca mesmo em serviço: a mina de ouro, segundo ela, está no mercado. O super. Mais precisamente, na prateleira dos congelados.

- É verdade! Conheci o Antônio nos congelados. Antigamente, eu me arrumava toda, e saía à noite. Tolice. Coisa de gente que não entende nada do assunto. Amadorismo! Assim que me profissionalizei, descobri o óbvio: eles estão na prateleira dos congelados! Estão todos ali, disponíveis... homens solteiros, homens separados, amantes do microondas, afogando suas
mágoas solitárias numa lasanha à bolonhesa... nada pode ser mais romântico!

Realmente, a Mariana vê romantismo numa lasanha congelada. E vai publicar conselhos quentíssimos para as amigas que procuram um parceiro; coisas do tipo: passe um batom, tome uma vitamina "C" (para evitar o resfriado!), e fique horas desfilando diante das portas mais geladas dos supermercados.

Cedo ou tarde, aparece um Antônio, apressado, que vai empilhar nos braços algumas dúzias de lasanhas; aí, é só esbarrar nele. Sim, também você não vai esperar que o Antônio olhe para os lados, né?

Antônio, o nome já diz, é um sujeito extremamente compromissado e afoito. Cabe à Mariana, portanto, derrubar as lasanhas dele no chão. Depois disso, é só correr para o abraço.

- Mas como é que você consegue escolher o Antônio só pelo sabor da lasanha?

- Ah, minha filha, hoje em dia, não se pode querer escolher muito, não! Se ficar com frescura, vai lá outra Mariana, e derruba as lasanhas do partidão! O negócio é ser rápida!

- Sim, mas... algum critério, você tem que ter! Pelo amor de Deus! Não acredito que você possa escolher o marido, assim, no corredor do supermercado, sem critério algum! Nenhuma exigência???

- Vai por mim, amiga: com o meu tempo de serviço, já aprendi que exigência é meio caminho andado para a solteirice crônica. Claro, ninguém é
de ferro. Uma exigência eu tenho, confesso. Mas só uma!

- Qual?

- Não falar "menas". Se falar "menas", eu sinto muito, pode ser a melhor lasanha do freezer, que eu não encaro.

- E "a nível de"? Pode falar?

- Segunda exigência. Abro uma uma exceção: se falar "a nível de", só se for a nível de sexo. Mais que isso, nem pensar!

13 julho 2001



Chega uma hora, na vida, em que a gente cansa de tentar achar explicações para as coisas. Cansa de procurar respostas. Enche o saco de escrever "cansa" no lugar de "enche o saco", e escreve "enche o saco", mesmo.

Chutado o pau da barraca, o que vier é sempre lucro.

Sem-vergonha dessa vida, viu? Parece que a gente vive na "peia", como diz um sábio amigo, mas, a bem da verdade, deixando-se de frescuras, o que sobra da batalha é justamente aquilo a que viemos. E a luta, não sendo lá muito sangrenta, já vale só pelo movimento que proporciona. E a vida - que até sangra, mas não morre! - é o quê, se não essa bagunça crônica, que, pouco a pouco, vai servindo para nos organizar por dentro?

Até a hora de nossa morte, amém.

Feliz do bebê que já viesse ao mundo com o pezinho pronto pra derrubar o primeiro balde que encontrasse pela frente. Sim, porque o melhor gol é aquele em que a gente entra com balde e tudo, ou vai me dizer que não?

Nunca comemorei nada sentadinha ao lado das minhas neuroses; nunca gritei de alegria enquanto passava a mão na cabeça dos meus limites.

Custei a entender que os dias mais cinzentos da minha vida não foram injustiça dos céus; o que eu via era só o cinza do asfalto, enquanto andava... e andava... louca de medo de me desequilibrar.

11 julho 2001

Não precisava

Em Porto Alegre, agora, dez graus. E vem caindo. E chove que Deus manda. O que foi que eu fiz, hein?

07 julho 2001

Aqui no Rio Grande, tchê, a cousa é muito outra

Aqui no Rio Grande, tudo funciona. Mentira! - diz a minha mãe -, que nada presta aqui também. Não vê o jornal da cidade, por exeplo? Não vê mesmo, claro que não vê, porque não tem.

A mãe até assinava, mas, um dia, chegava às 6h da matina; no outro dia, chegava às 9h. Aí ela já tinha saído; imagina se é mulher de ler jornal à noite. Reclamou três vezes. Cancelou a coisa.

Aliás, a coisa tem sido bastante cancelada, ela me diz, em todos os sentidos. As melhores lojas do shopping fecharam. Os restaurantes preferidos faliram. A maior casa noturna se mudou para outra cidade. Nada funciona! - ela insiste.

Mas tem uma coisa que, aqui no R.S., é bem melhor do que no Rio de Janeiro. E não se discute sobre isso: é o micro da minha mãe. Com Windows 95...

Você imagine que esta é a minha primeira publicação no meu próprio Blog. Sim, porque tive que deixar tudo nas mãos da Melissa, minha paciente (não no sentido de eu ser médica, mas no sentido de ela ter muito saco mesmo) amiga.

Tchê, aqui no Rio Grande a coisa é muito outra. Eu tenho um Blog vivo, bem ao meu alcance, direto dos pampas. Nem consigo acreditar, de tão bom. Melhor que isso, só o chimarrão que estou tomando.

Vais?

05 julho 2001

Vamos escorrer para onde?
Bíbi Da Pieve

No Rio Grande do Sul, nós chamamos macarrão de massa. Tá bom?

É que já vi gente achando estranho; por isso, vou explicando logo na entrada. Muitos dizem, cá um pouco mais para cima do país, que massa é aquilo de que se faz o pastel, a lasanha e a pizza. Enfim, querem me dizer que massa é, imagine!, massa.

Tudo bem que massa seja, de fato, massa. Mas, se assim for, então eu não vejo por que não admitir que aquelas tripinhas feitas de - de novo! - massa também sejam, ora, massa!

Se massa em forma de quadrado (lasanha) é massa, se massa em forma de bolotinha chata (pastel) é massa, e, se massa em forma de bola grande achatada (pizza) também é massa, então, desculpem-me, mas massa em forma de tripinha (macarrão, vá lá!) também há de ser massa, e muito massa.

Tudo isso foi para dizer que, aqui em casa, não temos escorredor de massa. Eu sei que é meio humilhante confessar essas deficiências domésticas, mas, convenhamos, eu sou uma mulher moderna. Compro comidinhas congeladas - light, que não sou boba! -, aperto dois ou três botões, e elas deixam de ser picolé salgado em quatro minutos. Eu disse quatro minutos! Quem é que precisa de escorredor de massa, hoje em dia?

Não fosse esse aborrecido racionamento de energia, ninguém precisaria, realmente, de um escorredor. Acontece que, nos últimos tempos, mulheres e homens modernos voltaram à idade da pedra, das velas e dos escorredores de massa. Eu, de minha parte, acho frustrante ter que aposentar aquela linda caixinha modernosa que descongela picolés salgados, transformando-os em almoço, e ainda - bip!, bip!, bip! - me chamando para a refeição. Mas, fazer o quê?, aposentei.

Não tenho vergonha nenhuma de confessar: comprei vários pacotinhos de massa instantânea (leia macarrão instantâneo, se quiser). Vou fazer almoço, pensei. Imagine que também passei a mão numa lata de atum, e, não bastasse, comprei ainda uma latinha de molho de tomate. Pronto, claro. Tudo muito pronto.

Quando fui ler o manual de instruções da massa-rápida, já me deparei com a primeira surpresa: três minutos? Não pode! Estão mentindo. Como é que vou cozinhar esta coisa em três minutos, e jogar por terra toda a minha teoria de mulher moderna? Não admito que alguma comida feita no fogão fique pronta antes dos meus congelados light.

Deixei cinco. Cinco minutos, só de raiva. E não quero conversa com essa massa metida a besta. Vai ficar cozinhando um minuto a mais do que o meu almoço moderno, sim senhora, ou a minha - bip!, bip!, bip! - caixinha mágica ficará ofendidíssima. Está aposentada, mas não está morta.

Ficou uma papa, é verdade. Mas isso não é nada, perto das minhas convicções.

Tudo prontinho. Atum e molho de tomate já se encontravam juntos, e eu já ia gritando "bip!, bip!, bip!", quando, de repente, dei-me conta do óbvio: havia uma quantidade exagerada de água dentro daquela massa empapada e pretensiosa. E eu não tenho escorredor; essa é a verdade, nua e empaçocada.

Fui com a tampa. Sabe como é? Pega-se a tampa da panela, coloca-se sobre ela, e vira-se o recipiente, com cuidado, dentro da pia. Deixa-se uma pequena abertura, naturalmente, para que a água possa escorrer, deixando a massa em paz, sequinha, lá dentro.

Na teoria, sou uma ótima escorredora de massa. Na prática, choro só de lembrar: foi-se tudo para dentro da pia. O raio da massa antipática, a água, a tampa, a panela, e a minha disposição para afazeres domésticos! Nunca mais.

Quando enxerguei a desgraça acontecendo, juro, pensei no presidente da República. Tinha que botar a culpa em alguém, e não sou modesta a ponto de xingar ministros, senadores; enfim, vou direto ao cume da hierarquia. Ia pelo ralo, naquele momento, toda a minha boa vontade com essa ordinária administração pública, que já vem cozinhando o país inteiro há vários anos - coisa mais antiga!

Perdoe a minha metáfora culinária, mas não pude evitar de ver aquela massa toda entrando pelo cano, e pensar - meu Deus, e agora? Vamos escorrer para onde?

29 junho 2001

Estou em obras
Bíbi Da Pieve

Desculpe o transtorno, mas é que estou me sentindo o próprio asfalto esburacado, em carne e concreto. Não posso escrever um texto agradável. Sinto muito. Estou em obras.

Se não for pedir demais, por favor, não perturbe. Não se deve provocar a ira de uma mulher em obras. E depois não diga que eu não avisei.

Por falar em aviso, já tratei de encomendar dois cones, daqueles bem chamativos, para colocar em volta de mim. Assim, ninguém vai poder se queixar da falta de sinalização.

Quatro! Dois cones é pouco sinal, para muita obra.

Seria ótimo se os helicópteros também colaborassem, mandando informações sobre o trânsito que vem a mim. Se todos ouvirem rádio direitinho, sabe como é, há outras vias, outros acessos, outros viadutos, enfim, torço para que a grande maioria se perca no meio do caminho e vá
parar, de preferência, na extremidade oposta à minha (para não dizer coisa pior). Evitarão, assim, os engarrafamentos quilométricos. Sim, porque estou em obras.

Seis! Estou achando que seis cones seria a quantidade mais acertada. Isso mesmo. Está decidido: seis cones.

Perdoe alguma vírgula mal colocada, alguma palavra não acentuada, alguma letra trocada. Não é fácil escrever uma crônica quando se está em obras. Prometo que dou um jeito nisso tudo, assim que as britadeiras pararem de fazer tanto barulho em mim. Impossível me concentrar desse jeito.

Sete cones, e não se fala mais no assunto. Um pra enfiar na cabeça.

Eu sei que não é a coisa mais agradável do mundo ler um texto esburacado, interrompido, sinalizado e engarrafado, mas, fazer o quê?, é o que temos, e acabou-se. Quem não gostar, eu sinto muito, pode acessar outra crônica, outra coluna, outro site, enfim, vá rodar em outras estradas, porque aqui a coisa ainda vai demorar um bom tempo para se resolver.

Estou em obras, meu amigo, e se dê por satisfeito - que ainda não estou cobrando pedágio. Por enquanto, mantenho a sanidade mental, e tenho plena consciência de que, infelizmente, a culpa é toda minha. Eu que me vire, portanto.

Não investi o suficiente? Resolvi economizar no material? Não me preocupei com a manutenção? Então. Eu que me vire.

Morar no Rio de Janeiro é maravilhoso, mas tem um fator negativo quase fatal - você pode estar passeando pelo shopping, inocentemente, e topar com a Carolina Ferraz, deslumbrante, bem ali, na sua frente. Isso é
como assalto: a gente sempre pensa que só acontece com os outros.

E não há mulher que não se sinta em obras depois de um tiro desses.

Tudo bem, confesso que exagerei. Foi só um ataque passageiro de futilidade, uma coisa momentânea e boba. A beleza é uma coisa muito relativa. Já ouvi dizer que a beleza está na cabeça das pessoas. Beleza interior. Ora, a estética. Logo eu. Coisa mais superficial. Cada pessoa tem um tipo diferente de beleza, é isso mesmo; passou, passou o susto, passou o transtorno, passou o congestionamento, passou tudo. Foi só uma crise. Estou muito bem, obrigada, e até a próxima crônica.


P.s.: E se eu mandasse fazer um cone do tamanho do Pão de Açúcar, e me enfiasse ali embaixo até o último dos meus dias?

25 junho 2001

Lori, querido. Faça alguma coisa pela nossa amizade que cheira a
mofo. De tão antiga, entenda-me bem.

Ocorre o seguinte: eu tenho um blog. Sabe o que é um blog? Calma,
não é maligno. Blog é a nova "mania" da internet. Um site bem simplesinho,
para e-gnorantes. Tudo é extremamente rápido e fácil num blog. Você publica
o que quiser lá, sem precisar de entender essas web-linguagens.

Maravilha, né?

Acontece que um blog não faz milagre, meu amigo, e o meu micro-leão
não suporta, não entende, não publica e não edita nada. Só complica, o infeliz.

A Melissa Mattos - www.enghaw.com.br -, minha amiga e paciente (não
no sentido de eu ser médica, mas no sentido de ela me aturar), foi quem fez
o meu blog. Lindamente, como tudo o que ela faz. Está lá, a coisa; pronta e
eficaz. Mas eu não consigo publicar nada, porque, segundo a própria Melissa,
"desse jeito esse micro nao entra nem como parte na troca..." (ela usa muito
as reticências, já observei; as reticências são ou não são o Comfort de uma
frase? São, sim. Amaciante... amaciante... amaciante... Viu?)

Venho, por meio deste e-mail, pedir encarecidamente que você
publique qualquer coisa minha lá no blog. Não; qualquer coisa, não. Publique
isso aqui, e nada mais. Pode ser? Mui grata. E, de mais a mais: não basta
ser baterista; tem que participar. Um abraço,

24 junho 2001

testando o Blog

23 junho 2001

A fábula dos irmãos ricos
Bíbi Da Pieve


O Edson Campos e a Ana Terra são irmãos. O sobrenome deles, na verdade, é da Silva.

Edson vem de Eduardo sonâmbulo (ed-son), porque ele tinha crises incríveis, até os 15 anos. De não poder dormir na cama de cima.

Ana vem de Mariana, que vem de Mário com Diana - os pais. A Mariana sempre dormia na cama de cima, claro. Caiu a Mari, ficou só a Ana.

Os dois irmãos têm uma banda de rock. Criaram nomes artísticos. Mudaram os sobrenomes.

Ana queria Terra, por causa do romance do Veríssimo. Edson não queria, de jeito nenhum, deixar de ser irmão dela. Então escolheu Campos - que, segundo ele, é sinônimo de Terra.

- Não existem campos sem terra, Ana. Assim, continuamos irmãos. Um não faz sentido sem o outro.

Ela achou esquisito, mas concordou.

A banda deles ainda não tem nome, não tem empresário, e não tem disco gravado. Mas está em vias de.

o Edson jogou na Loto:

- Ana, joguei na loto!

- Foi?

- Em três dias, vamos saber se ganhamos.

- Quanto?

- Muito.

- Ótimo!!

- É. Mas não vai mudar nada, né?

- Como assim?

- Só vamos ficar ricos.

- É...

- Talvez, pensando bem, a gente compre um apartamento.

- Ou dois.

- Melhor dois, mesmo. Aí a gente vai poder morar separado, sentir saudade, e ficar visitando o outro. Ficar mais perto, né.

- É, como agora.

- Sim. Bem como agora. E talvez a gente vá gravar um disco, sair por aí tocando, e depois...

- ... depois vamos gravar outro, mas antes precisamos compor mais
músicas.

- Como estamos fazendo agora.

- É, bem como agora.

- A gente pode ter dois carros...

- ... mas não vamos sair em comboio.

- Podemos comprar muitas roupas...

- ... mas aqui faz muito calor, vamos continuar usando poucas.

- Vamos poder ir a todos os cinemas e restaurantes do mundo...

- ... mas vamos continuar rezando para que não tenhamos tempo disponível pra isso.

- É, porque a gente vai querer tocar.

- Bem como agora.

- Pois é. Mas eu joguei, sabe, por desencargo de consciência.

- Fez bem. Vai que dá, né?

- É. Se der certo, azar!

O Edson e a Ana, irmãos de sangue, colegas de viagem e de sobrenomes sinônimos ficaram rindo do paradoxo "se der certo, azar". E resolveram fazer (mais) um pacto: se ficassem mesmo ricos, teriam que mudar alguma coisa muito importante. Não era possível que uma quantia imensa de dinheiro não mudasse a vida de duas pessoas!

Pensaram muito nisso. Depois de horas, tomaram a importante resolução - mudariam os próprios nomes. Mas uma vez. E foi a Ana quem impôs a drástica condição:

- Dessa vez, não vale sobrenome igual!

- Mas... nem sinônimo???

- Nem!!!

- E vamos deixar de ser irmãos, assim, de uma hora pra outra?

- Que besteira, Edson!! É só o nome!!

Contrariado, acabou concordando.

Ganharam na loto. Trato é trato. Ela se antecipou, e assinou:

"Anna Rica" (com dois "enes", que nome de gente rica tem
dupla consoante).

O Edson, coitado, todo jururu. Não queria deixar de ser irmão dela. Mas ela proibira homônimos e sinônimos! Refletiu; chorou um pouquinho, escondido. Irmão não pode valer sozinho. Um não faz sentido sem o outro. "Anna Rica", meu Deus, e agora?

Veio a idéia. Encheu-se de coragem, e não teve mais dúvida:

"Edsonn Também."

21 junho 2001

Fim do mistério
Bibi da Pieve

É com notável satisfação que esclareço, por meio deste, um dos mistérios mais importantes dos últimos tempos. Acalme-se e se cale, inquietude. É minha vez de botar a boca no dedo, e o dedo no teclado. Do micro.
Adiante-se: abra a sua boca. O máximo que conseguir. E controle a baba, pois vai ficar nessa posição por muito tempo. Eu descobri. E acabou o segredo, que a minha boca é coisa sem igual. Descobri, rapaz; eu desvendei, menina, o mistério da paixão.
Não a paixão de Cristo, aquela, que já tem dois mil anos. Eu digo essa paixãozinha, mesmo. A paixãozinha nossa de cada dia, contemporânea que só ela. De virar na direção errada, perder o ônibus, o senso, o juízo, o diabo a quatro. E ficar de quatro.
A paixão é o seguinte: marketing. Sério. Sei do que estou falando, homem de Deus! Pura jogada; estratégia barata, pra vender muito caro. E quem paga o pato somos nós; os patos, aqui. Tira o time, não. Todos nós. Todinhos.
Não existe isso de se apaixonar. Pensamos que sim, mas não. Veja bem, temos dois caminhos a seguir, mas vamos ao início de tudo. Não quero discutir religião, que é roubada. Portanto, admitamos estas duas situações - Adão (e Eva), ou os macacos. Dá no mesmo, no fim. Ou melhor, no começo.
Adão foi parido, aliás, inventado. Sei lá. Mas o fato é que apareceu por aí, o Adão. Eva, como toda a mulher, fez um charminho e só chegou depois (deve ter marcado uns dois séculos antes, e fez muito bem, que já chegou arrasando). O que fizeram? Um lanchinho natureba - maçã -, e um mundaréu de filhos. Literalmente - todos nós. Cadê a paixão? Nada! Não havia isso. Amor e sexo, tudo bem. Mas essa frescura de paixão, repito, não existe.
No caso dos macacos, nem preciso explicar. Já imaginou um macaco, todo bobo, oferecendo flores pra macaquinha dos seus sonhos? Pára com isso; macaco nem deve sonhar! E não sonha porque não é trouxa. Trouxas, já disse, somos todos nós. Sonhadores.
A macacada foi fazendo filho, se transformando, fazendo filho, comendo banana, banana, até que ficou em pé, nas duas trazeiras. E aí, meu bem, danou-se. Deu no que deu.
Essas coisas da natureza, do início dos tempos, é que são essenciais. A nossa essência, sacou? O resto é invenção pra vender produto. Paixão, meu caro, é o mesmo que aqueles espremedores de laranja automáticos. Quem é que precisa daquilo? Dizem que é pra você fazer menos força, mas, que piada, querem mesmo é tomar uns bons goles do suco do seu salário. Loucos de preocupação com as minhas mãozinhas, que estão. Comigo, não!
Apaixonados, dizemos que estamos felizes. Então compramos um CD; musiquinha, pra lembrar do outro. Uma roupa ajeitadinha; afinal, tem que estar bonito. Mora longe? Despesa com passagens. Mora perto? "Vou de táxi". Flores. Perfumes. Presentinhos. Bombons, festinhas, viagens, meu Deus, lá se foi o décimo-terceiro. Então você se vê afoito, coitado; duro! Sim, porque dinheiro pode até não trazer felicidade, mas garanto que a falta dele leva a danadinha embora. Rapidinho.
Portanto, está na sua cara, desnudo, o ex-mistério. A paixão de Cristo, tudo bem, até respeito. Já viu o tamanho daquela cruz? Nem eu, mas só imagino, coitado. Entretando, essa outra paixão, já disse, é armação. Marketing, sim senhor.
Tudo se resume - pra resumir - na sua escolha. Uma simples escolha, e você me ajuda a desmontar esse mercado hipócrita que nos cercou de idéias absurdas sobre bombons e flores. Faça a sua opção: se você vai de Adão e Eva, fique com a maçã. Se vai de macacada, seu negócio é com a banana. E vamos à luta.
Chega de muitos agradinhos. Foi-se o tempo. Se ela gosta mesmo de você, macaco, não vai se importar de encarar uma penca de bananas. E você, Dona Eva, se está mesmo tão caidinha pelo rapaz, tire a prova dos nove - ofereça-lhe uma polida maçã vermelha e a sua doce companhia. Que mais ele pode querer? E, se quiser, não presta. Vai por mim.
Quero ver, agora, a cara dos caras:
- Compre isso! Compre aquilo! Elas avançam!
Avançam, nada. Paixão não existe. Banana e maçã tem de sobra; a terra dá. Isso sem falar, Deus me perdoe, mas vou ter que confessar, com o veneno escorrendo pelo canto da boca - que o melhor, o melhor disso tudo é que as duplas sertanejas vão, finalmente, desaparecer do nosso mapa!!! Já pensou? Vale ou não vale, o esforço? Se vale.

20 junho 2001

Cada coisa leva embora a porcaria que pode
Bibi Da Pieve

Todo mundo tem um tio-avô que, lá pelas tantas, resolve morrer e deixar um buraco na infância da gente. O meu tio Peli foi-se embora quando eu tinha só nove anos, e deixou um rombo do tamanho do coração dele; tinha um enrome coração esbugalhado, uma alma esbugalhada, um jeito esbugalhado de ser. Tudo, no tio Peli, era grandioso. Por dentro.

Do lado de fora, o tio Peli era só meio tudo. Os olhos, sempre semi-abertos. A boca, meia boca; o Malboro enfiado no canto, não importava se aceso ou apagado - ele já nem sabia mais. Tinha metade cabelo, metade careca. Nem muito peludo, nem muito pelado. Os gestos eram lentos, o passo era arrastado, e a voz, a voz do tio Peli era aquele típico timbre de bebum. Já tinha só meia dicção.

Os numerólogos dizem que a gente vive em ciclos de nove anos. Meuprimero ciclo, portanto, deve ter acabado no exato instante em que o tio Peli teve a idéia de ir tomar sua cachaça no andar de cima. Lembro-me de ter sentido sua falta, mas era muito estranho, porque eu tinha uma verdadeira relação de amor e pavor com ele. O tio Peli me dava pânico; era assustador.

Enquanto todo mundo me dizia que arrotar era feio, aquele velho tio emitia sonoros arrotões, à mesa, e a turma toda caía na risada. Ai de mim, se eu fizesse parecido! Sem falar no pum, que chega a ser um parágrafo à parte.

Minha mãe dizia, minha filha, a gente faz pum é no banheiro. Mas eu nunca, francamente, nunca entendi o porquê. Se pum, mãe, é só um ventinho com cheiro de cocô, não é melhor soltar num lugar ventilado? No banheiro não é tudo fechado? Não, minha filha, o certo do pum é no banheiro. Então eu ficava horas imaginando o dia em que iriam inventar um vaso cuja descarga, em vez de água, soltasse um bocado de vento na bunda da gente. Aí, sim, o certo do pum seria no banheiro, porque a gente faria cocô no vaso da água, e pum no vaso do vento. Cada coisa leva embora a porcaria que pode.

E o tio Peli lá se importava com isso? Nada! O dele nem era mais pum; já era peido, mesmo. Na frente de todo mundo!, ele não dava a mínima. E, o mais curioso: ninguém ficava bravo com ele. Ai de mim, se fizesse parecido!

No dia em que levei um sermão da minha mãe, por ter dito uma mentira qualquer, o tio Peli chegou lá em casa com um presente: um pacote enorme de balas de goma. Que eu odiava. E ele perguntou, gostou do presente que o tio trouxe?, e eu respondi, é claro que não gostei, porque tenho nojo de balas de goma. Eu fui bem sincera, porque a mãe tinha dito para nunca mais mentir. Mas o tio Peli me deu um cascudo na cabeça, e mandou eu deixar de ser estúpida e mal educada, que ele nunca mais me dava nada. Olhei para a mãe, à espera de defesa, mas ela só riu... porque todo mundo ria do tio Peli, por mais malcriações que ele fizesse. E fazia muitas.

Passei aquele ciclo de nove anos sem entender o tio, e mais algum tempo sem me lembrar dele. A não ser quando enxergava um pacote de balas de goma, claro. Quando decidi escrever sobre ele, há alguns dias, voltei a pensar e tentar reunir tudo o que havia de tio Peli na minha lembrança. Foi quando tive a surpresa de, meio sem querer, enxergar um tio completamente diferente daquele que eu conheci.

O tio Peli está mais vivo do que nunca - foi o que eu descobri há poucos dias. Na verdade, a escavadeira que furou a minha infância com a morte dele não deixou só um buraco. Deixou buraco, areia e adubo. Que eu fizesse o que quisesse com aquilo.

Eu escolhi plantar um tio Peli aqui dentro, e nem havia percebido. Anos e anos depois da partida dele, resolvi furungar nas minhas gavetas internas, e dei de cara com a vivacidade daquele velho tio. Uma delícia de homem, que virou uma delícia de flor, que continua arrotando e peidando cá dentro de mim.

O tio Peli é, sem sombra de dúvida, o meu lado politicamente incorreto. Ele semeou irreverência nos primeiros nove anos da minha vida, e depois partiu, como quem diz, agora você resolve o que fazer com o que eu te deixei. Herdei o humor irônico do tio, e fui regando, com o passar dos anos, o velho que adoçou e assombrou a minha infância. Hoje, ele está mais moço do que nunca, e é outro homem; porque agora eu o entendo.

Os buracos nunca vêm de graça. São sempre passíveis de alguma plantação. Ainda que a semente fique adormecida durante ciclos e mais ciclos da nossa vida, um dia ela acorda, e ganhamos mais companhia. Neste momento, por exemplo, estou celebrando, tomando uma cachaça com o tio Peli. Acho que vamos varar a madrugada. E vamos partir somente juntos, quando Deus quiser; sabe lá onde vamos jogar nossa sinuca depois daqui. Deus é que sabe. Afinal, segundo a minha precoce teoria do vaso feito para pum, cada coisa leva embora a porcaria que pode.
Tragédia na orla - arrastão!
Bibi Da Pieve

Vão dizer que é mentira, cascata minha. Mas não é. E, dessa vez, eu tenho a prova - está aqui na minha frente; a minha carteira de habilitação, completamente enrugada. Estou, portanto, encarando-me com 98, 99 anos de idade. Até que sou uma velhinha simpática, mas acho que preciso dar um corte nesse cabelo. Até lá, terei tempo.
Terça-feira de sol, quase junho, Rio de Janeiro. Peguei as minhas coisinhas e fui à praia. Quase dez da manhã, e eu atirada na areia, toda relaxada, branca como folha de ofício, e nem te ligo.
Ouvir Nei Lisboa no walkman é uma redundância, porque o cara já tem uma voz que vai direto ao ouvido, parece que ele canta grudado na orelha da gente. E como canta, esse compositor porto-alegrense! E como compõe, esse cantor gaúcho! Mas eu, que sou exagerada, estava com o Nei enfiado no walkman, e o walkman enfiado no ouvido. Lá na praia, bem tranqüila.
Tudo bem, eu senti que a areia estava um pouco úmida. Bastante úmida, vá lá. Mas, juro, aquela umidade era uniforme, ia quase até o quiosque. Pensei que aquilo era coisa da ressaca do mar, e eu não tenho nada a ver com ressaca alheia, que já bastam as minhas. Achei que ele tinha brincado ali a noite toda, mas agora era a minha vez. Nunca imaginei o que estava por vir.
Eis que, musiquinha vem, musiquinha vai, o lado A terminou. O lado B é mais relaxante ainda, coisa boa. Virei o lado, e me virei também. A bunda pra cima, e vá Nei. Acordei cedo, hoje. Cedo demais; acho que estou com sono. E o Nei já dizia "cochila, cochila, imagina uma luz violeta, puxa um cochilinho..." puxei.
A tragédia estava prestes a começar; o chifrudo e seus capangas já enxergavam, pelo monitor do inferno, a cena que aconteceria cá comigo. Meus inimigos, se soubessem com antecedência, teriam comprado convites de camarote. Não importaria o preço; valeria a pena. E como.
A bela adormecida que vos escreve, então, teve o despertar mais sinistro de todas as suas encarnações nesta Terra. Sem exagero nenhum, posso dizer que uma puta de uma onda, literalmente, me abocanhou. Já imaginou, ser engolido por uma onda do mar, no meio de um sono ingênuo? E ouvindo Nei Lisboa?? Foi assim.
Sobressaltada, apavorada, levantei-me como pude, e aí começou a pior parte da guerra: tastaviando, ainda meio sonhando, saí em busca dos meus esparramados pertences. Avistei o walkman a uns quatro metros, e quis fazer bonito - saí no pinote, o passo largo, vem cá que eu te pego. Foi pior; na segunda pernada, enfiei o pé numa concha quebrada e me estabaquei no chão.
Bunda pra baixo, pernas pra cima. Foi bem nessa hora que eu resolvi olhar para os lados, calcular o tamanho do mico. Duas senhoras com cara de "eu avisei!", um cachorro com jeito debochado, uma menina gargalhando escancaradamente, e um cover do Ricky Martin. Aí, parei de calcular o estrago. Era o meu fim.
Mas não desisti de recuperar as minhas coisas, claro que não. Fui de quatro mesmo, que era mais rápido, àquelas alturas do campeonato. Aliás, fui de três, porque mancava do pé que a concha cortou. Imagine a cena.
O resultado do arrastão, pra encurtar a história, foi: um relógio, um par de chinelos, uma canga e um protetor solar - perdidos. O mar, definitivamente, levou. Não os pude recuperar.
O walkman, com a fitinha do Nei Lisboa, ainda consegui agarrar. Mas trouxe pra casa só de lembrança, mesmo, que o aparelho veio empaçocado de areia e água salgada, coitado. Minha sacolinha com a chave do carro e a carteira de habilitação, felizmente, recuperei também. Mas a carteira, como já disse, está mostrando uma previsão 3X4 daquilo que serei aos 99 anos.
Isto é, se eu chegar lá. Se eu tiver a sorte de escapar com vida. Porque, da violência, ninguém está livre. É muito perigoso ir à praia.

19 junho 2001

De macacos a cubos de gelo
Bibi Da Pieve

Ainda me lembro da decepção que me tomou quando vi, pela primeira vez, o mapa da minha cidade.
- Mãe, tá tudo torto!
- Como assim?
- Tá errado! O mapa tem de ser quadrado. Isso aqui não é o mapa; está cheio de riscos, tudo torto. As casas são quadradas, as ruas, tudo é quadrado. A cidade também tem de ser quadrada, senão não ia caber certinho.
A mãe disse que cabia, sim, mas sobravam algumas pontinhas. Achei medonho, morar num lugar onde sobravam pontas. Alguém tinha que dar um jeito naquilo.
Naquele tempo, eu ainda não sabia. Nem sonhava que, um dia, eu me sentaria em frente a um monitor quadrado, a escrever em linhas precisamente retas, sem precisar caprichar com a mão.
Tem gente que não se dá conta, mas estamos sendo verdadeiramente encaixotados. Por dentro e por fora, e por nós mesmos. Tudo o que se vê tem quatro lados, quatro pontas. Ou, então, é precisamente redondo - só pra contrariar.
De qualquer maneira, estamos fugindo, cada vez mais, das imperfeições estéticas. Os estilistas criam roupas quadradas, e embrulham mulheres retas, que desfilam numa passarela em forma de "T".
Nossos carros são quadrados. As ruas só não são quadradas porque são tão espichadas, que dois dos lados se perderam na distância. Mas ainda têm os outros dois; paralelos, claro.
Como ciranças diante de brinquedos, nos deslumbramos com a perfeição que começamos a produzir - em série! - há muitos anos. Mas as crianças crescem, e abandonam os brinquedos; nós, não. Continuamos, com os olhinhos fixos nas linhas retas, e esquecemos, vejam só, dos nossos próprios umbigos.
Imperfeitos.
Essa brincadeira durou gerações e gerações. Como se sabe, o ser humano tem uma capacidade nata de adaptação. É por isso que, embora ninguém ainda ouse falar nisso, estamos virando cubos.
Está muito na moda aquela tal de "ginástica natural"; nos jornais, na TV. As pessoas ficam imitando os movimentos dos bichos; pra lá e pra cá, rastejando, ou andando nas "quatro patas". O motivo disso está claro: é uma tentativa de evitar o encubamento da raça humana. Querem fazer com que voltemos a ser humanos de verdade, com direito a movimentos e traços curvos, tudo muito imperfeitinho. Ironia - o que nos sobrou de mais humano, hoje em dia, são os bichos.
Quando virarmos grandes cubos, não seremos mais gente. Seremos enormes cubos de gelo, naturalmente, que não existe gente perfeitamente quadrada. Por isso - ninguém nunca te contou, mas é verdade - você estala quando ousa se mover além do "normal". É o gelo, que começa por dentro, e vai acabar nos transformando em "icebergs" regularmente recortados. Sem pontinhas.
Outro dia, pensando nisso, e me sentindo internamente geladíssima, comecei a bolar um possível antídoto para esse enquadramento humano. Fomos nós que inventamos; cabe a nós, portanto, resolver a encrenca.
Modéstia à parte, já andei conseguindo bons resultados. O segredo é simples: parar de se deslumbrar com a perfeição inventada; começar a se derreter pela apaixonante imperfeição que nasceu conosco.
Pode ser qualquer coisa; pense em algo que derreta você. Uma mulher, uma canção, um gol de placa, uma onda, uma conversa franca. E vá se derretendo, aos poucos. Com o tempo, acustuma - e é uma delícia. Acho que ainda dá tempo, vamos desencaixotar a vida, e voltar a ser humanos.

18 junho 2001

As pessoas do conserto
Bibi Da Pieve

Acordei, de manhã. Já se estranha o fato. Levantei, o que é um agravante, suavemente, será que sou eu mesma?, andei até o espelho, isso inspira cuidados, e sorri. Sorri? Vai chover.
A previsão do tempo é precisa; vai chover, sim, e não é pouca água. Jamais sorrio pela manhã, principalmente porque, não raro, e muito justamente, estou dormindo por estas horas. E, se calha de eu me achar desperta, acidental e equivocadamente, ralho com os móveis, com as paredes, com o ar, com a vida e com tudo o que se apresenta diante de minhas conhecidas remelas.
Pelo menos não sorri para mim. Não, isso nunca. Ao dar de cara com a minha ameaçadora imagem matinal, já desvio o olhar por cima de meu ombro refletido no espelho, e capto, com o rabo do olho, lá em cima, no cantinho, um pedaço aberto da janelinha que me anuncia o cinza confortável do dia. Pelo menos não teremos uma manhã ensolarada; já que tenho que ficar acordada, é bom que não me venha agora um raio de sol, se enfiando por qualquer fresta, querendo atenção. Sorri para a chuva que previ, e fiquei na torcida. Que venha a água.
Finalmente, antes que eu tornasse a desabar na cama, lembrei-me do motivo pelo qual me encontrava na vertical tão cedo. Diacho, marquei com o rapaz do gás. O aquecedor pifou, e ninguém toma banho há dias. Sobrou para mim.
Às dez horas, dei-me conta de que cheirava não muito bem. Na dúvida, afastei-me do aquecedor, e pude comprovar, com certo alívio, que o que fedia era, não eu, mas o aparelho. O conforto veio, mas subitamente se evaporou, quando resolvi pensar um pouco melhor na situação. Se o aparelho fedia, é que vazava gás. E, se vazava gás, o perigo era dos grandes.
Comecei a torcer para o fedor ser meu, muito meu; eu tinha que feder, estava certa disso, dei uma corridinha até a sala e voltei à cozinha, duas vezes, eu tinha que me convencer - aquele bodum provinha de minhas axilas, ou de qualquer outra parte da minha anatomia, não importava qual.
Tudo, menos vazamento de gás.
Jamais desejei tanto cheirar mal, mas, quanto mais desejava, mais sentia que o odor proveniente do aquecedor era tão evidente quanto a chuva que, àquelas alturas, não tardaria. E não tardou mesmo, de modo que o aguaceiro se desvencilhou das nuvens antes mesmo que eu pudesse colocar a chaleira no fogo para o chimarrão.
Depois que acendi a boca do fogão, lembrei, entre risadas nervosas, que não se deve produzir faísca onde haja algum vazamento de gás. E o gás, que não era bobo, já se fazia mais notado do que o barulho da chuva. Porque chiava, o danado, ainda que eu nem imaginasse por onde diabos tanto vazava.
Mas, que vazava, vazava.
A torcida aumentou, e eu, sozinha em casa, só podia mesmo torcer. Agora, não sabia se desligava ou deixava acesa a boca do fogão, se fazia ou não fazia o chimarrão, se rezava o Pai Nosso, ajoelhava no milho ou tentava achar o buraco por onde escapava o gás e, com a boca, aparava o vazamento.
Na dúvida, larguei a chaleira com água em cima da boca acesa - não se mexe em time que ganha, pensei, vai que eu apago aqui e o gás vazado vem justamente querer se mancomunar com esta faísca, aí estou perdida. Chiava a chuva, chiava o escapamento do gás, chiava a água na chaleira, e chiava ainda a panela de pressão da vizinha. E tudo fedia. Mas fedia forte, mesmo.
Saio correndo, apavorada, decidida a telefonar para os bombeiros. O rapaz do conserto, até agora, nada. Estou no corredor, ensurdecida pela chiadeira insistente, quando um estouro súbito e assustador me faz agachar no chão. Se for tiro, ouvi dizer que assim me escapo. Mas não era. Escangalhou-se algum transformador da rede elétrica, e a luz se foi embora. Bem agora!
De quatro, e no escuro, ando até o telefone, mas é tudo em vão - que o telefone é sem fio, e, portanto não funciona sem luz. Dou meia volta, quero retornar à cozinha, fazer sei lá o quê, mas exagero no giro e dou com a testa na parede, onde sou obrigada a parar por uns segundos: recuperar os sentidos todos, lembrar do meu nome, idade, e sentir que o gás agora fede sem freios. Pavor.
Em posição de invejar militar treinado, agachadíssima, arrasto-me até a cozinha, e constato o pior - que a ventania entrou pela janela, aberta para sair o gás, e veio justamente soprar na boca do meu fogão. Agora, vazava gás também pelo fogão; era o fim. O cheiro? Nem ouso descrever.
Estou prestes a colocar um fim no meu desespero, naquela angústia toda, na minha própria vida. Procuro, aflita, uma caixa de fósforos. Se eu acendo isso aqui, penso, termino por explodir a casa toda, e descanso em paz. Não sei onde, mas qualquer inferno deve ser menos pior do que essa bomba atômica em que transformei o meu próprio lar. Chega, vou dar cabo de mim.
Quando achei o fósforo, ouvi três batidas na porta. Só pode ser o cara do gás. Abro ou não abro? Se não abrir, me mato. Se abrir, corre o risco de ele explodir com tudo isso, e ainda levar a fama que seria minha. Mas quem é o estúpido que interrompe o único suicídio da minha vida, assim, na maior? E com que direito? Pode ser um anjo - não tinha pensado por esse lado. Vou abrir.
Fora o uniforme, que era cor de abóbora - ou moranga, nunca sei a diferença -, podia mesmo ser um anjo. Tinha um sorriso delicioso, um par de olhos pretos, grandes, e as sobrancelhas desenhadas com capricho. A boca imensa, claro.
- Bom dia. Foi aqui que pediram conserto do aquecedor?
- Entra... - foi o que eu pude dizer.
Voltou a luz. Parou a chuva. Um lindo sol surgiu por entre as nuvens, e iluminou a minha casa, a varanda, a vida. O chiado parou, afinal, era só a panela de pressão da vizinha. O que fedia era, não o aquecedor - até porque não havia vazamento algum -, nem tampouco eu, mas meio quilo de carne moída que eu havia esquecido, há dois ou três dias, em cima da máquina de lavar. E caiu dentro do tanque, onde apodreceu, entre moscas e pingos d'água. Bem que eu tinha estranhado; o barulho do vazamento daquela torneira tinha mesmo mudado de uns dias pra cá.
O anjinho cor-de-abóbora trocou uma pecinha inofensiva do aquecedor, e ainda deu um sorriso ingênuo, "olha, a danadinha tava ruim mesmo, tinha que trocar."
Tinha que trocar. Claro que tinha. E eu fiquei ali, admirada, enquanto ele consertava o aquecedor, a torneirinha do gás, e colocava no lixo a carne podre, dizendo e sorrindo "acho que estragou..."
Eu tinha esquentado a água:
- Aceita um chimarrão?, arrisquei.
- Chima o quê? Ah, aquele chazinho que os gaúchos colocam num copinho de madeira, e chupam num canudo de ferro, né? Vou querer provar, sim, se a senhora me dá licença.
Apresentei: cuia e bomba, anjinho cor-de-abóbora; anjinho cor-de-abóbora, cuia e bomba. Muito prazer. E tomamos o mate; ele, entre risos e caretas; eu, entre ele e o meu pensamento.
O pensamento que me puxava a orelha, dizendo que, quando menos se espera, cai do céu um anjo para nos salvar a vida, e ainda fazer companhia no chimarrão. Um anjo de abóbora; ou moranga, não importa.
O certo é que Deus volta e meia está mandando alguém para consertar algumas coisas na gente.













17 junho 2001

Aboletada na memória
Bíbi Da Pieve

Onde será que a gente fica quando está voando na memória, observando o passado?

Quando lembro os tempos de criança, uma cena me vem à cabeça, e eu revejo tudo, como se estivesse mesmo lá. A questão é: será que não estou?

E, se estou, será que não me falta espaço? Será que não fica apertado? Desconfortável?

Foi refletindo sobre isso que eu decidi criar uma poltrona vaga. Sempre que alguma coisa boa estiver acontecendo, eu preciso me lembrar de mim; lembrar que eu, no futuro, posso querer voltar e dar uma olhadinha naquela cena de novo. Nada mais justo do que guardar um lugar para mim mesma.

A gente nunca sabe o dia de amanhã. Posso enlouquecer e resolver morar na Índia. Quando estiver lá, vou sentir saudade do calçadão e da água-de-coco, não vou? Então. Já reservo uma cadeira, e enfio dois canudinhos no coco - que comprar dois já seria demais, convenhamos, eu que beba muita água lá na Índia, antes da viagem, e pronto.

O ser humano vai ficando velho, e as idéias cansam de morar certinho dentro da cabeça da gente. Começam a querer fazer baderna lá. Tudo bem, eu penso que ninguém vai se chatear pelo fato de eu (hoje!) querer ser solidária comigo mesma (amanhã!). Isso é que é seguro de vida!

Conforme o tempo vai passando, vamos precisando de um certo conforto. Já não encaro aqueles festivais de rock, por exemplo. Além disso, quanto mais anos vivemos, mais longos são os vôos de memória. Já se vai longe a infância, meu amigo; não é nenhum Rio - São Paulo, não! Sem contar que há muito mais lugares para eu visitar, à medida que vou saindo deles.

Tudo isso conta. É coerente que eu queira me aboletar de maneira muito cômoda quando vier me visitar; afinal, devo me sentir sempre em casa.

Neste momento, por exemplo, eu posso estar aqui comigo. Nesse caso, permita-me dizer a mim mesma: querida, fique à vontade. Não se assuste, isto é só um vôo de memória. Na verdade, nada do que você vê está realmente acontecendo com você agora, mas sim comigo. Ou, melhor - com você, já aconteceu.

Na verdade, somos a mesma pessoa, e você só está confortavelmente instalada aqui porque eu tive o cuidado de providenciar a infra-estrutura necessária para que tudo corresse bem na sua viagem. Não é maravilhoso? Garanto que você está adorando.

Se você veio do ano que vem, querida, peço que não se demore muito, se não se importar. Sabe como é, a fila é grande; pretendo passar dos 80. Se bobear, já tem uma de nós com setentinha de ficha na mão, vamos lá, respeite-me idosa.

Pois não? A senhora pode entrar, e ficar quanto tempo desejar!
Quantos anos? Ah, me desculpe, que indiscrição. Mas, afinal, não estamos só entre... mim? Deixe de frescura, diga logo quantos anos eu tenho!

83??? Maravilha!

O negócio é o seguinte; pra senhora, eu posso abrir o jogo. Tá vendo essa ficha aqui? Pode começar a preencher. Onde mora, quantos filhos, situação financeira, psicológica, matrimonial... a partir de 2001, eu quero saber de tudo!

Ou vai me dizer que acreditou naquele papo romântico de solidariedade comigo mesma? Ora! Bem que vê que a senhora não me conhece!!!
O homem do calçadão
Bíbi Da Pieve

Pensei que fosse só uma caminhada normal, corriqueira. Saí de casa, como sempre, em direção à praia, tranqüilamente. Não sabia o que me esperava naquele dia.

Sempre ouço falar em atropelamento; vejo no cinema, até quase atropelei um cachorro quando estava aprendendo a dirigir. Faz muito tempo. Mas sempre pensamos que essas coisas só acontecem com os outros.

Foi no calçadão da praia, mesmo. O sol já ia mergulhando naquela antena parabólica de sempre, lá no outro lado da rua. Eu olhava o dourado reflexo no mar, e ouvia Gil no walkman. "Tem que morrer pra germinar..."

O peso do walkman na minha cintura, do lado direito, sempre dá a falsa impressão de que o short vai cair. Mas não vai. Nunca caiu. Não seria agora. Eu sei que não cai; só fica um pouquinho repuxado ali. Mesmo sabendo, eu me distraí. Por alguns segundos, fiquei brincando de puxar o short pra cima; dava mais dois passos, ele caía, eu puxava de novo. Tudo em vão. Se eu soubesse do perigo que corria, não me entregaria a tal distração nem por um instante. Mas a gente nunca sabe.

Foi então que, de repente, aquilo surgiu do nada. E me atropelou, de maneira covarde, reduzindo-me a pó. Foi como se o mundo todo assumisse um tamanho milhões de vezes maior do que a sua real dimensão, de modo que só posso concluir que não foi ele que aumentou - mas eu que diminuí, esfarelando-me, lenta e dolorosamente, a partir do momento em que aquilo me atropelou. Em pleno calçadão da praia.

Aquilo deveria ter uns trinta e poucos anos. Usava um par de tênis cuja placa não pude anotar; mas sei que não eram sujos, nem limpinhos demais. Não havia meias. Direto do cano dos tênis, surgia um par de tornozelos perfeitos, que, não contentes, ainda culminavam nas batatas, aquelas batatas, as batatas da perna, que brotavam sabe lá Deus de que natureza, e que reinavam, rígidas, marcantes, decididas, descascadas e
descaradas, bem na minha frente.

Um já me bastaria, mas aquilo tinha dois joelhos, de onde surgia o par de coxas mais exatas que eu já vira em toda a minha vida. O número certo de pêlos; nem um fiozinho a menos, nem um a mais. A tensão dos músculos, a cadência, a tonalidade - enfim, a personalidade toda, caprichosamente traçada pelo Divino naquelas pernas cinematográficas.

Usava um short preto e branco, e uma camiseta branca. Lisa. Simples. Básica. Só. Coisa de quem não ousa sobrecarregar o colorido da própria natureza. E faz bem. Panos dispersam.

Fosse tudo isso, como de fato era, e corresse pela praia, como de fato corria, não me atropelaria - se não fosse pelo desaforado pecado que sua cabeça cometia: desciam dela, como uma cascata de caramelo, milhares de fios de um cabelo castanho-dourado, meio liso, meio cacheado, que desaguava nas rochas fortes daqueles fartos ombros. Era o meu fim.

Quando dei por mim, já totalmente derrubada e evaporada, o Gil ainda me soprava no ouvido: "dura caminhada..."

Ainda não sei se aquela figura existiu mesmo, ou se foi apenas uma alucinação resultante do chá de pôr-do-sol naquela xícara parabólica, maresia, vento e Gil. Se eu raciocinasse rápido, poderia ter caído no chão. Nesse caso, se eu tivesse o narizinho e as pernas da Sandrinha (Bullock, claro), certamente aquele moço, fosse fictício ou não, teria ido me juntar na ciclovia. E, sem sombra de dúvida, tascaria um beijo apaixonado bem no meio da minha boca vermelha. E seríamos felizes para sempre.

Mas, como a dura caminhada era tão concreta quanto aquele calçadão, só me resta viver o resto dos meus dias com a cruel incerteza - não sei se aquele homem existia mesmo.

Certos homens nascem da gente; depois choram, depois crescem, depois morrem - lá fora.

Outros, nascem na gente. Depois choramos, depois crescemos, depois morremos - aqui dentro. Sem que eles sequer tenham existido, um dia, lá fora.

Não sei se o homem do calçadão é um homem de verdade. Mas posso adiantar que, existindo, ele não faz muita justiça.

16 junho 2001

Eles que se cuidem!
Bíbi Da Pieve

Em Copacabana, mais uma vez, houve assalto dentro de um ônibus. A arma, descobriu-se depois, era de brinquedo. Mas não avisaram a cobradora, uma mulher de 42 anos, que, visivelmente, não estava para brincadeira.

***

Eu tinha uns dez anos, e era presidente da turma. Fora eleita, pela maioria dos meus coleguinhas, para este importante cargo. A professora dizia que eu deveria zelar pela harmonia do grupo, sendo responsável pela ordem e união de uma classe de mais de trinta pimpolhos. Adorei a idéia.

Juntamos dinheiro, os pimpolhos e eu, vendendo bolo de cenoura e chocolate. Queríamos uma bola de vôlei. Conseguimos comprá-la. Eu era uma boa presidente.

Às vésperas do primeiro torneio de vôlei, a bola sumiu. Foi aquilo. Todos ficaram chocados; havia um ladrão mirim entre nós, e precisávamos descobrir quem era.

Como presidente, fui muito cobrada. Trinta e poucos eleitores exigiam que eu tivesse pulso suficiente para tomar uma atitude rígida, uma medida realmente severa, que pusesse fim naquele mistério. E eu não tinha nem uma vaga idéia de que medida poderia ser aquela.

Passei noites em claro, apavorada; só pensava no escândalo da bola de vôlei. Como saber quem a tinha roubado? E se, por acaso, tivesse sido uma amiga minha? Como ficaria a minha imagem? E se a bola simplesmente tivesse se perdido de nós, assim, como bola que rola, escada abaixo, buraco adentro, nunca se sabe, e nunca mais se acha? À época, ainda não se falava em CPI.

No dia do tão esperado torneio, estávamos todos reunidos na quadra de vôlei, esperando. Eu havia feito um apelo dramático, um dia antes: fui à mesa da professora, virei-me para aquela pequena nação, e supliquei, quase lacrimejante, que o gatuno devolvesse a bola, na calada do meio-dia, como quem não quisesse nada, no mesmo lugar de onde a havia roubado. O caso seria abafado, e faríamos um lindo torneio.

Mas a bola não apareceu.

Particularmente, eu suspeitava de um menino. Ele tinha atitudes estranhas, e era a figura que mais se alterava quando tocávamos no assunto da bola. Tinha cara de pessoa que roubava bola de vôlei só para ver o circo pegar fogo. Não que precisasse; ganhava uma boa mesada, o pai era médico famoso. Mas ele não me enganava, eu tinha certeza que algo esquisito havia ali. E nunca tinha ido muito com a cara dele, mesmo.

Pois foi justamente o Maurício quem resolveu incendiar a discussão, no dia do jogo que não aconteceu. Via-se, claramente, que ele jogava a opinião pública contra mim, gritando que a culpa era das autoridades, e que, de duas, uma: ou eu dava um jeito de providenciar outra bola no ato, ou se elegeria alguém mais competente para o cargo da presidência.

Eu fui ouvindo aqueles desaforos todos, mas sabia que precisava manter a calma. Sempre fui muito contida e racional. Não seria inteligente da minha parte, só porque ele me ofendia, descer ao baixo nível em que já se encontrava aquela discussão. Eu teria cautela. Não fosse o Maurício ter tocado num ponto crucial:

- FORA, QUATRO-OLHO!!!!!!!

Eu tinha começado a usar óculos naquele ano. E odiava. Sofria muito com o preconceito. Saía do sério.

Quando dei por mim, estava montada em cima do Maurício (já caído no chão), enchendo aquela boca suja de murros. E ameaçando:

- Agora você não vai mais precisar usar aparelho, porque eu vou consertar estes dentes da frente é na mão mesmo!!!

Não houve jogo. Naquele mesmo dia, renunciei ao meu cargo, por - sabiamente - concluir que não tinha sangue de barata suficiente para lidar com política. O Maurício, coitado, acabou com os dentões da frente jogando lá na zaga.

***

Mas, voltando ao assalto em Copacabana: a cobradora se grudou no pescoço de um dos assaltantes, e explodiu num ataque irado que terminou rasgando o rosto do sujeito a socos. O azarado foi preso. O outro bandido, mais ágil, conseguiu escapar - da cobradora, não da polícia - pela porta de trás.

Não entendo nada de comportamento feminino, mas, seja lá o que isso signifique, percebo que alguma coisa está mudando. E, sempre que posso, aviso aos homens que me são caros: cuidem-se, por favor. Foi-se o tempo em que a nossa maior agressão era deixar acumular roupa suja. Agora, resolvemos as nossas sujeiras de um modo menos meigo. Foi-se o tempo.
Minhoquice crônica
Bíbi Da Pieve

Fico me segurando, o tempo todo, para não cair no texto filosofante eterno. Sabe aqueles textos enormes, quase sem ritmo, que começam com uma idéia, e vão para outra, e outra, e acabam achando uma ligação esquisitíssima entre elas, até que você começa a desconfiar seriamente das condições mentais do autor? Aí você passa pela fase da dúvida - será que o doido aqui sou eu? -, e, invariavelmente, termina concluindo que, sim, o maluco é você, e ponto final.

Certamente, caro leitor, eu sou uma filosofante enrustida. Confesso.
Faço de conta que não sou, mas, quando estou a sós com a minha caneta e o meu confidente cadernão universitário, meu amigo, não queira ler aquelas enfadonhas e mal pontuadas linhas.

Estou me sentindo como uma falsa-loura-siliconada-que-fez-15-plásticas-e-ainda-acha-pouco, mas é preciso mostrar a mole realidade: meu texto - o verdadeiro, não este aqui - é cheio de pelancas. E celulite.

A minha letra, pra começar, é um desastre. Letra insegura, sem caráter. Acredita que ela ainda não se decidiu para que lado cai? Isso é até uma questão política, eu insisto com ela, mas a danada teima em cair cada dia para um lado diferente.

Os assuntos sobre os quais discorro, sem a mínima propriedade - mas cheia da moral! -, vão de religião a rock'n roll, passando pela psicologia - e ficando umas boas páginas por lá. Sim, porque todo chato pensa que é psicólogo. Não fujo à regra.

Aqui está o meu cadernão, que não me deixa mentir. Observo as primeiras linhas, e já embarco num rocambole interminável de idéias obesas e perfeitamente dispensáveis, de modo que meu próprio senso crítico de leitora já trata de providenciar o bote salva-vidas. E pulo fora. Nem eu me leio.

O problema começa quando sinto uma irresistível atração por um pensamento - pode ser qualquer um, estou falando sério! -, agarro-me naquilo, com toda força, e saio a galope para nunca mais voltar. Pronto. Todas as minhas idéias são uma passagem só de ida.

É claro que eu sempre filosofo buraco abaixo. Se for para concluir que a vida é bela, é melhor que não se pense muito. Eu levo muito a sério esta coisa de filosofar; não vejo graça nenhuma em ficar construindo castelinhos de areia, não, vou logo esburacando, para ver o que há lá embaixo.

O amigo leitor, depois desta amarga confissão, deve estar se perguntando, afinal, como é que eu faço para não trazer todos os meus vícios textualmente suicidas para uma coluna como esta. Por que eu não me entrego aos prazeres patológicos da filosofia aborrecida?

Simples: eu procurei ajuda.

Foi um amigo escritor que me salvou, um belo dia, quando eu ia esquentando os motores da minha escavadeira filosófica; ele virou-se para mim, e observou, com honestidade:

- Credo! Mas você minhoca demais!!!

Minhocar - pensei. O que viria a ser minhocar? Minhocar, como assim? Minhocar, mas em que sentido?

Passei uma semana inteirinha no subsolo do meu cérebro, minhocando sobre o ato de minhocar. Tudo o que eu minhocava, registrava no meu cadernão. Naquela semana, mal saí de casa. Não podia: precisava minhocar, "devagar e urgentemente", para descobrir quais seriam as causas, as conseqüências, os benefícios e os malefícios da minha minhoquice crônica.

No sétimo dia, desencanei. E escrevi um leve texto, sucinto, esbelto, objetivo e até bem divertido.

Finalmente, eu estava curada. Não da minhoquice crônica - porque continuo filosofando desvairada e descaradamente -, mas da falta de solidariedade. Hoje em dia, minhoco no meu canto; sei que não é legal fazer dos outros minhocantes passivos.

Minhoco, solitária, e ainda engulo a minha fumaça. Faço isso durante seis dias. No sétimo, escrevo uma crônica.
O alheio
Bíbi Da Pieve

O que é que interessa, na vida da gente, se não a vida dos outros?

Os meios de comunicação, trocando em miúdos, são fofocagem explícita. Não no mau sentido; entenda. Comunicação - convenhamos! - é falatório. Troca de informação.

Informação nada mais é do que um fato que se espalha, estou errada? Tenha a paciência.

A primeira coisa que você faz, de manhã, antes mesmo do seu filho acordar, é olhar para a cara de um jornal e dizer - bom dia. Bom dia, mundo.
Bom dia, manchetes. Bom dia, informação (termo eufemísitico que quer dizer: especulação sobre a vida alheia).

Não sei que grande encanto o ser humano tem por ele próprio, de modo a criar enormes livros sujos diários que só têm a finalidade de discorrer sobre a vida dos outros, mas o fato é que, fora o horóscopo e os quadrinhos, tudo o mais é uma convicção descabida e pretensiosa sobre o alheio. E eu acho ótimo. Mas, que é esquisito, é.

Uma professora de yoga me dizia que meditar era o ato de eu me encontrar comigo mesma, e eu ia fundo. Meditava mesmo. Marcava hora, e tudo. Hora comigo mesma. Sempre fui meio britânica com essas coisas; não foi difícil meditar em ponto. Só tinha um problema terrível: faltava-me o alheio.

A humanidade é totalmente voltada para o alheio. Tudo bem, o Ocidente; que o Oriente é mais dado a meditações, e até deve ser por isso que eles têm os olhinhos apertadinhos - de tanto olhar para dentro.

Do lado de cá, nós, olhudos, passamos a vida toda apreciando o verde do gramado do vizinho - e falando mal dele. Tivemos o trabalho de organizar os assuntos - política, economia, saúde, país, mundo, diversão -, e ainda criamos uma escala de importância para eles. Tamanha a nossa vontade de furungar na grama dos outros. Veja a que ponto chegamos.

Só pode ser o tal narcisismo. Não pode ser que ninguém perceba isso. O ato de bisbilhotar no alheio nada mais é do que a adoração do próprio reflexo. Estamos vidrados na nossa imagem. A "era da informação" é isso: a humanidade, penteando o cabelinho.

O ápice do narcisismo moderno é a Internet; o nosso imenso espelho virtual. Sim, porque, ali, a informação é rápida. Quanto mais veloz (e nítido) for o reflexo, tanto melhor o espelho é. É por isso que estamos nesse clima quase orgástico de deslumbre.com!

Quem procura, acha. Não é de hoje que estamos penteando o cabelo em frente ao espelho. Muito bonitinho, esse ritual. Acontece que, mais cedo ou mais tarde, podemos acabar dando com os burros n'água. E eu fico me perguntando: já pensou se descobrimos, um belo dia, que somos um imenso tribufu? Temos fortes indícios, confesse. Ou você não lê os nossos espelhos
periódicos? Desse jeito, não haverá bisturi que dê conta.

Estamos assediando demais o alheio. Eu dizia, lá em cima, que "informação nada mais é do que um fato que se espalha". Deixa eu corrigir: informação nada mais é do que um fato que se espelha.

A minha professora de yoga é que tinha razão. Melhor mirar um pouco para dentro, agora. Quem sabe, se cada um descobrir o tribufu por conta própria... pode ser que ainda dê jogo.