27 abril 2004

O dia da minhoca


Um dia você está se arrastando pelo chão feito uma minhoca descabelada, um tanto perdida da vida, filosofando porcarias e comendo biscoito recheado sabor vazio – aquele que não importa, porque você nem está sentindo o gosto. É o hábito.

Pouco melhor seria se você tivesse um nome a zelar, um trabalho importante a fazer, uma festa à noite. Mas você não tem nada disso; você é apenas uma minhoca fútil, coitada, que acordou e deu com o dedinho no pé da mesa mais próxima e gritou um palavrão bem cabeludo. O dia estava só começando.

Minhoca não tem dedinho, eu sei, mas aqui a minhoca é minha e eu ponho nela o que quiser.

A pobre da minhoca gosmenta se põe a pensar na vida, na dela e na dos outros, que ninguém é de ferro. No quanto são sórdidas as relações humanas, sobretudo quando acabam sem deixar vestígios palpáveis, ou seja, em todos os casos. E, meu Deus, quantas vezes a minhoca já passou por isto: um fim fantasmagórico, um evaporar de fatos, de beijos, de atos corriqueiros que se tornam parte do passado sem passar por nenhuma roleta, sem fazer um “bip” que avise aos mais interessados.

Até mesmo os ruídos em forma de gente – pondera a minhoca, enquanto o biscoito esfarela o vazio -, até essas peças perturbadoras da vida nos fazem falta, sobretudo quando vêm com “delay” embutido, aquele efeito que deixa um eco soando, lembrando, incomodando, ando, ando...

De repente a minhoca passa perto de um espelho, e, involuntariamente, ajeita o cabelo despenteado com as mãos, logo depois achando graça daquele instante de vaidade em meio a suspiros e filosofias pessimistas. Um riso fora de foco aparece refletido em sua frente. Uma sonora risada então tira o lugar dos ecos do passado, e uma alegria infantil toma conta do presente – que, afinal, é o único momento infinito de que a minhoca dispõe.

Você, minhoca rasteira, das atividades vulgares do dia-a-dia, dos pensamentos medíocres, das provocações internas, da autocrítica cruel e devastadora; você se traiu lindamente ao espiar no espelho o que a sua razão autófaga não lhe deixava perceber. Ainda que meio fora de foco ou propósito, minhoquinha ordinária, você tem o riso espontâneo. Uma manifestação que vem à tona nos momentos mais impróprios, e derruba por terra toda sua conspiração contra si própria.

Você descobriu o sabor do biscoito recheado que comia: era doce deleite.