29 junho 2001

Estou em obras
Bíbi Da Pieve

Desculpe o transtorno, mas é que estou me sentindo o próprio asfalto esburacado, em carne e concreto. Não posso escrever um texto agradável. Sinto muito. Estou em obras.

Se não for pedir demais, por favor, não perturbe. Não se deve provocar a ira de uma mulher em obras. E depois não diga que eu não avisei.

Por falar em aviso, já tratei de encomendar dois cones, daqueles bem chamativos, para colocar em volta de mim. Assim, ninguém vai poder se queixar da falta de sinalização.

Quatro! Dois cones é pouco sinal, para muita obra.

Seria ótimo se os helicópteros também colaborassem, mandando informações sobre o trânsito que vem a mim. Se todos ouvirem rádio direitinho, sabe como é, há outras vias, outros acessos, outros viadutos, enfim, torço para que a grande maioria se perca no meio do caminho e vá
parar, de preferência, na extremidade oposta à minha (para não dizer coisa pior). Evitarão, assim, os engarrafamentos quilométricos. Sim, porque estou em obras.

Seis! Estou achando que seis cones seria a quantidade mais acertada. Isso mesmo. Está decidido: seis cones.

Perdoe alguma vírgula mal colocada, alguma palavra não acentuada, alguma letra trocada. Não é fácil escrever uma crônica quando se está em obras. Prometo que dou um jeito nisso tudo, assim que as britadeiras pararem de fazer tanto barulho em mim. Impossível me concentrar desse jeito.

Sete cones, e não se fala mais no assunto. Um pra enfiar na cabeça.

Eu sei que não é a coisa mais agradável do mundo ler um texto esburacado, interrompido, sinalizado e engarrafado, mas, fazer o quê?, é o que temos, e acabou-se. Quem não gostar, eu sinto muito, pode acessar outra crônica, outra coluna, outro site, enfim, vá rodar em outras estradas, porque aqui a coisa ainda vai demorar um bom tempo para se resolver.

Estou em obras, meu amigo, e se dê por satisfeito - que ainda não estou cobrando pedágio. Por enquanto, mantenho a sanidade mental, e tenho plena consciência de que, infelizmente, a culpa é toda minha. Eu que me vire, portanto.

Não investi o suficiente? Resolvi economizar no material? Não me preocupei com a manutenção? Então. Eu que me vire.

Morar no Rio de Janeiro é maravilhoso, mas tem um fator negativo quase fatal - você pode estar passeando pelo shopping, inocentemente, e topar com a Carolina Ferraz, deslumbrante, bem ali, na sua frente. Isso é
como assalto: a gente sempre pensa que só acontece com os outros.

E não há mulher que não se sinta em obras depois de um tiro desses.

Tudo bem, confesso que exagerei. Foi só um ataque passageiro de futilidade, uma coisa momentânea e boba. A beleza é uma coisa muito relativa. Já ouvi dizer que a beleza está na cabeça das pessoas. Beleza interior. Ora, a estética. Logo eu. Coisa mais superficial. Cada pessoa tem um tipo diferente de beleza, é isso mesmo; passou, passou o susto, passou o transtorno, passou o congestionamento, passou tudo. Foi só uma crise. Estou muito bem, obrigada, e até a próxima crônica.


P.s.: E se eu mandasse fazer um cone do tamanho do Pão de Açúcar, e me enfiasse ali embaixo até o último dos meus dias?

25 junho 2001

Lori, querido. Faça alguma coisa pela nossa amizade que cheira a
mofo. De tão antiga, entenda-me bem.

Ocorre o seguinte: eu tenho um blog. Sabe o que é um blog? Calma,
não é maligno. Blog é a nova "mania" da internet. Um site bem simplesinho,
para e-gnorantes. Tudo é extremamente rápido e fácil num blog. Você publica
o que quiser lá, sem precisar de entender essas web-linguagens.

Maravilha, né?

Acontece que um blog não faz milagre, meu amigo, e o meu micro-leão
não suporta, não entende, não publica e não edita nada. Só complica, o infeliz.

A Melissa Mattos - www.enghaw.com.br -, minha amiga e paciente (não
no sentido de eu ser médica, mas no sentido de ela me aturar), foi quem fez
o meu blog. Lindamente, como tudo o que ela faz. Está lá, a coisa; pronta e
eficaz. Mas eu não consigo publicar nada, porque, segundo a própria Melissa,
"desse jeito esse micro nao entra nem como parte na troca..." (ela usa muito
as reticências, já observei; as reticências são ou não são o Comfort de uma
frase? São, sim. Amaciante... amaciante... amaciante... Viu?)

Venho, por meio deste e-mail, pedir encarecidamente que você
publique qualquer coisa minha lá no blog. Não; qualquer coisa, não. Publique
isso aqui, e nada mais. Pode ser? Mui grata. E, de mais a mais: não basta
ser baterista; tem que participar. Um abraço,

24 junho 2001

testando o Blog

23 junho 2001

A fábula dos irmãos ricos
Bíbi Da Pieve


O Edson Campos e a Ana Terra são irmãos. O sobrenome deles, na verdade, é da Silva.

Edson vem de Eduardo sonâmbulo (ed-son), porque ele tinha crises incríveis, até os 15 anos. De não poder dormir na cama de cima.

Ana vem de Mariana, que vem de Mário com Diana - os pais. A Mariana sempre dormia na cama de cima, claro. Caiu a Mari, ficou só a Ana.

Os dois irmãos têm uma banda de rock. Criaram nomes artísticos. Mudaram os sobrenomes.

Ana queria Terra, por causa do romance do Veríssimo. Edson não queria, de jeito nenhum, deixar de ser irmão dela. Então escolheu Campos - que, segundo ele, é sinônimo de Terra.

- Não existem campos sem terra, Ana. Assim, continuamos irmãos. Um não faz sentido sem o outro.

Ela achou esquisito, mas concordou.

A banda deles ainda não tem nome, não tem empresário, e não tem disco gravado. Mas está em vias de.

o Edson jogou na Loto:

- Ana, joguei na loto!

- Foi?

- Em três dias, vamos saber se ganhamos.

- Quanto?

- Muito.

- Ótimo!!

- É. Mas não vai mudar nada, né?

- Como assim?

- Só vamos ficar ricos.

- É...

- Talvez, pensando bem, a gente compre um apartamento.

- Ou dois.

- Melhor dois, mesmo. Aí a gente vai poder morar separado, sentir saudade, e ficar visitando o outro. Ficar mais perto, né.

- É, como agora.

- Sim. Bem como agora. E talvez a gente vá gravar um disco, sair por aí tocando, e depois...

- ... depois vamos gravar outro, mas antes precisamos compor mais
músicas.

- Como estamos fazendo agora.

- É, bem como agora.

- A gente pode ter dois carros...

- ... mas não vamos sair em comboio.

- Podemos comprar muitas roupas...

- ... mas aqui faz muito calor, vamos continuar usando poucas.

- Vamos poder ir a todos os cinemas e restaurantes do mundo...

- ... mas vamos continuar rezando para que não tenhamos tempo disponível pra isso.

- É, porque a gente vai querer tocar.

- Bem como agora.

- Pois é. Mas eu joguei, sabe, por desencargo de consciência.

- Fez bem. Vai que dá, né?

- É. Se der certo, azar!

O Edson e a Ana, irmãos de sangue, colegas de viagem e de sobrenomes sinônimos ficaram rindo do paradoxo "se der certo, azar". E resolveram fazer (mais) um pacto: se ficassem mesmo ricos, teriam que mudar alguma coisa muito importante. Não era possível que uma quantia imensa de dinheiro não mudasse a vida de duas pessoas!

Pensaram muito nisso. Depois de horas, tomaram a importante resolução - mudariam os próprios nomes. Mas uma vez. E foi a Ana quem impôs a drástica condição:

- Dessa vez, não vale sobrenome igual!

- Mas... nem sinônimo???

- Nem!!!

- E vamos deixar de ser irmãos, assim, de uma hora pra outra?

- Que besteira, Edson!! É só o nome!!

Contrariado, acabou concordando.

Ganharam na loto. Trato é trato. Ela se antecipou, e assinou:

"Anna Rica" (com dois "enes", que nome de gente rica tem
dupla consoante).

O Edson, coitado, todo jururu. Não queria deixar de ser irmão dela. Mas ela proibira homônimos e sinônimos! Refletiu; chorou um pouquinho, escondido. Irmão não pode valer sozinho. Um não faz sentido sem o outro. "Anna Rica", meu Deus, e agora?

Veio a idéia. Encheu-se de coragem, e não teve mais dúvida:

"Edsonn Também."

21 junho 2001

Fim do mistério
Bibi da Pieve

É com notável satisfação que esclareço, por meio deste, um dos mistérios mais importantes dos últimos tempos. Acalme-se e se cale, inquietude. É minha vez de botar a boca no dedo, e o dedo no teclado. Do micro.
Adiante-se: abra a sua boca. O máximo que conseguir. E controle a baba, pois vai ficar nessa posição por muito tempo. Eu descobri. E acabou o segredo, que a minha boca é coisa sem igual. Descobri, rapaz; eu desvendei, menina, o mistério da paixão.
Não a paixão de Cristo, aquela, que já tem dois mil anos. Eu digo essa paixãozinha, mesmo. A paixãozinha nossa de cada dia, contemporânea que só ela. De virar na direção errada, perder o ônibus, o senso, o juízo, o diabo a quatro. E ficar de quatro.
A paixão é o seguinte: marketing. Sério. Sei do que estou falando, homem de Deus! Pura jogada; estratégia barata, pra vender muito caro. E quem paga o pato somos nós; os patos, aqui. Tira o time, não. Todos nós. Todinhos.
Não existe isso de se apaixonar. Pensamos que sim, mas não. Veja bem, temos dois caminhos a seguir, mas vamos ao início de tudo. Não quero discutir religião, que é roubada. Portanto, admitamos estas duas situações - Adão (e Eva), ou os macacos. Dá no mesmo, no fim. Ou melhor, no começo.
Adão foi parido, aliás, inventado. Sei lá. Mas o fato é que apareceu por aí, o Adão. Eva, como toda a mulher, fez um charminho e só chegou depois (deve ter marcado uns dois séculos antes, e fez muito bem, que já chegou arrasando). O que fizeram? Um lanchinho natureba - maçã -, e um mundaréu de filhos. Literalmente - todos nós. Cadê a paixão? Nada! Não havia isso. Amor e sexo, tudo bem. Mas essa frescura de paixão, repito, não existe.
No caso dos macacos, nem preciso explicar. Já imaginou um macaco, todo bobo, oferecendo flores pra macaquinha dos seus sonhos? Pára com isso; macaco nem deve sonhar! E não sonha porque não é trouxa. Trouxas, já disse, somos todos nós. Sonhadores.
A macacada foi fazendo filho, se transformando, fazendo filho, comendo banana, banana, até que ficou em pé, nas duas trazeiras. E aí, meu bem, danou-se. Deu no que deu.
Essas coisas da natureza, do início dos tempos, é que são essenciais. A nossa essência, sacou? O resto é invenção pra vender produto. Paixão, meu caro, é o mesmo que aqueles espremedores de laranja automáticos. Quem é que precisa daquilo? Dizem que é pra você fazer menos força, mas, que piada, querem mesmo é tomar uns bons goles do suco do seu salário. Loucos de preocupação com as minhas mãozinhas, que estão. Comigo, não!
Apaixonados, dizemos que estamos felizes. Então compramos um CD; musiquinha, pra lembrar do outro. Uma roupa ajeitadinha; afinal, tem que estar bonito. Mora longe? Despesa com passagens. Mora perto? "Vou de táxi". Flores. Perfumes. Presentinhos. Bombons, festinhas, viagens, meu Deus, lá se foi o décimo-terceiro. Então você se vê afoito, coitado; duro! Sim, porque dinheiro pode até não trazer felicidade, mas garanto que a falta dele leva a danadinha embora. Rapidinho.
Portanto, está na sua cara, desnudo, o ex-mistério. A paixão de Cristo, tudo bem, até respeito. Já viu o tamanho daquela cruz? Nem eu, mas só imagino, coitado. Entretando, essa outra paixão, já disse, é armação. Marketing, sim senhor.
Tudo se resume - pra resumir - na sua escolha. Uma simples escolha, e você me ajuda a desmontar esse mercado hipócrita que nos cercou de idéias absurdas sobre bombons e flores. Faça a sua opção: se você vai de Adão e Eva, fique com a maçã. Se vai de macacada, seu negócio é com a banana. E vamos à luta.
Chega de muitos agradinhos. Foi-se o tempo. Se ela gosta mesmo de você, macaco, não vai se importar de encarar uma penca de bananas. E você, Dona Eva, se está mesmo tão caidinha pelo rapaz, tire a prova dos nove - ofereça-lhe uma polida maçã vermelha e a sua doce companhia. Que mais ele pode querer? E, se quiser, não presta. Vai por mim.
Quero ver, agora, a cara dos caras:
- Compre isso! Compre aquilo! Elas avançam!
Avançam, nada. Paixão não existe. Banana e maçã tem de sobra; a terra dá. Isso sem falar, Deus me perdoe, mas vou ter que confessar, com o veneno escorrendo pelo canto da boca - que o melhor, o melhor disso tudo é que as duplas sertanejas vão, finalmente, desaparecer do nosso mapa!!! Já pensou? Vale ou não vale, o esforço? Se vale.

20 junho 2001

Cada coisa leva embora a porcaria que pode
Bibi Da Pieve

Todo mundo tem um tio-avô que, lá pelas tantas, resolve morrer e deixar um buraco na infância da gente. O meu tio Peli foi-se embora quando eu tinha só nove anos, e deixou um rombo do tamanho do coração dele; tinha um enrome coração esbugalhado, uma alma esbugalhada, um jeito esbugalhado de ser. Tudo, no tio Peli, era grandioso. Por dentro.

Do lado de fora, o tio Peli era só meio tudo. Os olhos, sempre semi-abertos. A boca, meia boca; o Malboro enfiado no canto, não importava se aceso ou apagado - ele já nem sabia mais. Tinha metade cabelo, metade careca. Nem muito peludo, nem muito pelado. Os gestos eram lentos, o passo era arrastado, e a voz, a voz do tio Peli era aquele típico timbre de bebum. Já tinha só meia dicção.

Os numerólogos dizem que a gente vive em ciclos de nove anos. Meuprimero ciclo, portanto, deve ter acabado no exato instante em que o tio Peli teve a idéia de ir tomar sua cachaça no andar de cima. Lembro-me de ter sentido sua falta, mas era muito estranho, porque eu tinha uma verdadeira relação de amor e pavor com ele. O tio Peli me dava pânico; era assustador.

Enquanto todo mundo me dizia que arrotar era feio, aquele velho tio emitia sonoros arrotões, à mesa, e a turma toda caía na risada. Ai de mim, se eu fizesse parecido! Sem falar no pum, que chega a ser um parágrafo à parte.

Minha mãe dizia, minha filha, a gente faz pum é no banheiro. Mas eu nunca, francamente, nunca entendi o porquê. Se pum, mãe, é só um ventinho com cheiro de cocô, não é melhor soltar num lugar ventilado? No banheiro não é tudo fechado? Não, minha filha, o certo do pum é no banheiro. Então eu ficava horas imaginando o dia em que iriam inventar um vaso cuja descarga, em vez de água, soltasse um bocado de vento na bunda da gente. Aí, sim, o certo do pum seria no banheiro, porque a gente faria cocô no vaso da água, e pum no vaso do vento. Cada coisa leva embora a porcaria que pode.

E o tio Peli lá se importava com isso? Nada! O dele nem era mais pum; já era peido, mesmo. Na frente de todo mundo!, ele não dava a mínima. E, o mais curioso: ninguém ficava bravo com ele. Ai de mim, se fizesse parecido!

No dia em que levei um sermão da minha mãe, por ter dito uma mentira qualquer, o tio Peli chegou lá em casa com um presente: um pacote enorme de balas de goma. Que eu odiava. E ele perguntou, gostou do presente que o tio trouxe?, e eu respondi, é claro que não gostei, porque tenho nojo de balas de goma. Eu fui bem sincera, porque a mãe tinha dito para nunca mais mentir. Mas o tio Peli me deu um cascudo na cabeça, e mandou eu deixar de ser estúpida e mal educada, que ele nunca mais me dava nada. Olhei para a mãe, à espera de defesa, mas ela só riu... porque todo mundo ria do tio Peli, por mais malcriações que ele fizesse. E fazia muitas.

Passei aquele ciclo de nove anos sem entender o tio, e mais algum tempo sem me lembrar dele. A não ser quando enxergava um pacote de balas de goma, claro. Quando decidi escrever sobre ele, há alguns dias, voltei a pensar e tentar reunir tudo o que havia de tio Peli na minha lembrança. Foi quando tive a surpresa de, meio sem querer, enxergar um tio completamente diferente daquele que eu conheci.

O tio Peli está mais vivo do que nunca - foi o que eu descobri há poucos dias. Na verdade, a escavadeira que furou a minha infância com a morte dele não deixou só um buraco. Deixou buraco, areia e adubo. Que eu fizesse o que quisesse com aquilo.

Eu escolhi plantar um tio Peli aqui dentro, e nem havia percebido. Anos e anos depois da partida dele, resolvi furungar nas minhas gavetas internas, e dei de cara com a vivacidade daquele velho tio. Uma delícia de homem, que virou uma delícia de flor, que continua arrotando e peidando cá dentro de mim.

O tio Peli é, sem sombra de dúvida, o meu lado politicamente incorreto. Ele semeou irreverência nos primeiros nove anos da minha vida, e depois partiu, como quem diz, agora você resolve o que fazer com o que eu te deixei. Herdei o humor irônico do tio, e fui regando, com o passar dos anos, o velho que adoçou e assombrou a minha infância. Hoje, ele está mais moço do que nunca, e é outro homem; porque agora eu o entendo.

Os buracos nunca vêm de graça. São sempre passíveis de alguma plantação. Ainda que a semente fique adormecida durante ciclos e mais ciclos da nossa vida, um dia ela acorda, e ganhamos mais companhia. Neste momento, por exemplo, estou celebrando, tomando uma cachaça com o tio Peli. Acho que vamos varar a madrugada. E vamos partir somente juntos, quando Deus quiser; sabe lá onde vamos jogar nossa sinuca depois daqui. Deus é que sabe. Afinal, segundo a minha precoce teoria do vaso feito para pum, cada coisa leva embora a porcaria que pode.
Tragédia na orla - arrastão!
Bibi Da Pieve

Vão dizer que é mentira, cascata minha. Mas não é. E, dessa vez, eu tenho a prova - está aqui na minha frente; a minha carteira de habilitação, completamente enrugada. Estou, portanto, encarando-me com 98, 99 anos de idade. Até que sou uma velhinha simpática, mas acho que preciso dar um corte nesse cabelo. Até lá, terei tempo.
Terça-feira de sol, quase junho, Rio de Janeiro. Peguei as minhas coisinhas e fui à praia. Quase dez da manhã, e eu atirada na areia, toda relaxada, branca como folha de ofício, e nem te ligo.
Ouvir Nei Lisboa no walkman é uma redundância, porque o cara já tem uma voz que vai direto ao ouvido, parece que ele canta grudado na orelha da gente. E como canta, esse compositor porto-alegrense! E como compõe, esse cantor gaúcho! Mas eu, que sou exagerada, estava com o Nei enfiado no walkman, e o walkman enfiado no ouvido. Lá na praia, bem tranqüila.
Tudo bem, eu senti que a areia estava um pouco úmida. Bastante úmida, vá lá. Mas, juro, aquela umidade era uniforme, ia quase até o quiosque. Pensei que aquilo era coisa da ressaca do mar, e eu não tenho nada a ver com ressaca alheia, que já bastam as minhas. Achei que ele tinha brincado ali a noite toda, mas agora era a minha vez. Nunca imaginei o que estava por vir.
Eis que, musiquinha vem, musiquinha vai, o lado A terminou. O lado B é mais relaxante ainda, coisa boa. Virei o lado, e me virei também. A bunda pra cima, e vá Nei. Acordei cedo, hoje. Cedo demais; acho que estou com sono. E o Nei já dizia "cochila, cochila, imagina uma luz violeta, puxa um cochilinho..." puxei.
A tragédia estava prestes a começar; o chifrudo e seus capangas já enxergavam, pelo monitor do inferno, a cena que aconteceria cá comigo. Meus inimigos, se soubessem com antecedência, teriam comprado convites de camarote. Não importaria o preço; valeria a pena. E como.
A bela adormecida que vos escreve, então, teve o despertar mais sinistro de todas as suas encarnações nesta Terra. Sem exagero nenhum, posso dizer que uma puta de uma onda, literalmente, me abocanhou. Já imaginou, ser engolido por uma onda do mar, no meio de um sono ingênuo? E ouvindo Nei Lisboa?? Foi assim.
Sobressaltada, apavorada, levantei-me como pude, e aí começou a pior parte da guerra: tastaviando, ainda meio sonhando, saí em busca dos meus esparramados pertences. Avistei o walkman a uns quatro metros, e quis fazer bonito - saí no pinote, o passo largo, vem cá que eu te pego. Foi pior; na segunda pernada, enfiei o pé numa concha quebrada e me estabaquei no chão.
Bunda pra baixo, pernas pra cima. Foi bem nessa hora que eu resolvi olhar para os lados, calcular o tamanho do mico. Duas senhoras com cara de "eu avisei!", um cachorro com jeito debochado, uma menina gargalhando escancaradamente, e um cover do Ricky Martin. Aí, parei de calcular o estrago. Era o meu fim.
Mas não desisti de recuperar as minhas coisas, claro que não. Fui de quatro mesmo, que era mais rápido, àquelas alturas do campeonato. Aliás, fui de três, porque mancava do pé que a concha cortou. Imagine a cena.
O resultado do arrastão, pra encurtar a história, foi: um relógio, um par de chinelos, uma canga e um protetor solar - perdidos. O mar, definitivamente, levou. Não os pude recuperar.
O walkman, com a fitinha do Nei Lisboa, ainda consegui agarrar. Mas trouxe pra casa só de lembrança, mesmo, que o aparelho veio empaçocado de areia e água salgada, coitado. Minha sacolinha com a chave do carro e a carteira de habilitação, felizmente, recuperei também. Mas a carteira, como já disse, está mostrando uma previsão 3X4 daquilo que serei aos 99 anos.
Isto é, se eu chegar lá. Se eu tiver a sorte de escapar com vida. Porque, da violência, ninguém está livre. É muito perigoso ir à praia.

19 junho 2001

De macacos a cubos de gelo
Bibi Da Pieve

Ainda me lembro da decepção que me tomou quando vi, pela primeira vez, o mapa da minha cidade.
- Mãe, tá tudo torto!
- Como assim?
- Tá errado! O mapa tem de ser quadrado. Isso aqui não é o mapa; está cheio de riscos, tudo torto. As casas são quadradas, as ruas, tudo é quadrado. A cidade também tem de ser quadrada, senão não ia caber certinho.
A mãe disse que cabia, sim, mas sobravam algumas pontinhas. Achei medonho, morar num lugar onde sobravam pontas. Alguém tinha que dar um jeito naquilo.
Naquele tempo, eu ainda não sabia. Nem sonhava que, um dia, eu me sentaria em frente a um monitor quadrado, a escrever em linhas precisamente retas, sem precisar caprichar com a mão.
Tem gente que não se dá conta, mas estamos sendo verdadeiramente encaixotados. Por dentro e por fora, e por nós mesmos. Tudo o que se vê tem quatro lados, quatro pontas. Ou, então, é precisamente redondo - só pra contrariar.
De qualquer maneira, estamos fugindo, cada vez mais, das imperfeições estéticas. Os estilistas criam roupas quadradas, e embrulham mulheres retas, que desfilam numa passarela em forma de "T".
Nossos carros são quadrados. As ruas só não são quadradas porque são tão espichadas, que dois dos lados se perderam na distância. Mas ainda têm os outros dois; paralelos, claro.
Como ciranças diante de brinquedos, nos deslumbramos com a perfeição que começamos a produzir - em série! - há muitos anos. Mas as crianças crescem, e abandonam os brinquedos; nós, não. Continuamos, com os olhinhos fixos nas linhas retas, e esquecemos, vejam só, dos nossos próprios umbigos.
Imperfeitos.
Essa brincadeira durou gerações e gerações. Como se sabe, o ser humano tem uma capacidade nata de adaptação. É por isso que, embora ninguém ainda ouse falar nisso, estamos virando cubos.
Está muito na moda aquela tal de "ginástica natural"; nos jornais, na TV. As pessoas ficam imitando os movimentos dos bichos; pra lá e pra cá, rastejando, ou andando nas "quatro patas". O motivo disso está claro: é uma tentativa de evitar o encubamento da raça humana. Querem fazer com que voltemos a ser humanos de verdade, com direito a movimentos e traços curvos, tudo muito imperfeitinho. Ironia - o que nos sobrou de mais humano, hoje em dia, são os bichos.
Quando virarmos grandes cubos, não seremos mais gente. Seremos enormes cubos de gelo, naturalmente, que não existe gente perfeitamente quadrada. Por isso - ninguém nunca te contou, mas é verdade - você estala quando ousa se mover além do "normal". É o gelo, que começa por dentro, e vai acabar nos transformando em "icebergs" regularmente recortados. Sem pontinhas.
Outro dia, pensando nisso, e me sentindo internamente geladíssima, comecei a bolar um possível antídoto para esse enquadramento humano. Fomos nós que inventamos; cabe a nós, portanto, resolver a encrenca.
Modéstia à parte, já andei conseguindo bons resultados. O segredo é simples: parar de se deslumbrar com a perfeição inventada; começar a se derreter pela apaixonante imperfeição que nasceu conosco.
Pode ser qualquer coisa; pense em algo que derreta você. Uma mulher, uma canção, um gol de placa, uma onda, uma conversa franca. E vá se derretendo, aos poucos. Com o tempo, acustuma - e é uma delícia. Acho que ainda dá tempo, vamos desencaixotar a vida, e voltar a ser humanos.

18 junho 2001

As pessoas do conserto
Bibi Da Pieve

Acordei, de manhã. Já se estranha o fato. Levantei, o que é um agravante, suavemente, será que sou eu mesma?, andei até o espelho, isso inspira cuidados, e sorri. Sorri? Vai chover.
A previsão do tempo é precisa; vai chover, sim, e não é pouca água. Jamais sorrio pela manhã, principalmente porque, não raro, e muito justamente, estou dormindo por estas horas. E, se calha de eu me achar desperta, acidental e equivocadamente, ralho com os móveis, com as paredes, com o ar, com a vida e com tudo o que se apresenta diante de minhas conhecidas remelas.
Pelo menos não sorri para mim. Não, isso nunca. Ao dar de cara com a minha ameaçadora imagem matinal, já desvio o olhar por cima de meu ombro refletido no espelho, e capto, com o rabo do olho, lá em cima, no cantinho, um pedaço aberto da janelinha que me anuncia o cinza confortável do dia. Pelo menos não teremos uma manhã ensolarada; já que tenho que ficar acordada, é bom que não me venha agora um raio de sol, se enfiando por qualquer fresta, querendo atenção. Sorri para a chuva que previ, e fiquei na torcida. Que venha a água.
Finalmente, antes que eu tornasse a desabar na cama, lembrei-me do motivo pelo qual me encontrava na vertical tão cedo. Diacho, marquei com o rapaz do gás. O aquecedor pifou, e ninguém toma banho há dias. Sobrou para mim.
Às dez horas, dei-me conta de que cheirava não muito bem. Na dúvida, afastei-me do aquecedor, e pude comprovar, com certo alívio, que o que fedia era, não eu, mas o aparelho. O conforto veio, mas subitamente se evaporou, quando resolvi pensar um pouco melhor na situação. Se o aparelho fedia, é que vazava gás. E, se vazava gás, o perigo era dos grandes.
Comecei a torcer para o fedor ser meu, muito meu; eu tinha que feder, estava certa disso, dei uma corridinha até a sala e voltei à cozinha, duas vezes, eu tinha que me convencer - aquele bodum provinha de minhas axilas, ou de qualquer outra parte da minha anatomia, não importava qual.
Tudo, menos vazamento de gás.
Jamais desejei tanto cheirar mal, mas, quanto mais desejava, mais sentia que o odor proveniente do aquecedor era tão evidente quanto a chuva que, àquelas alturas, não tardaria. E não tardou mesmo, de modo que o aguaceiro se desvencilhou das nuvens antes mesmo que eu pudesse colocar a chaleira no fogo para o chimarrão.
Depois que acendi a boca do fogão, lembrei, entre risadas nervosas, que não se deve produzir faísca onde haja algum vazamento de gás. E o gás, que não era bobo, já se fazia mais notado do que o barulho da chuva. Porque chiava, o danado, ainda que eu nem imaginasse por onde diabos tanto vazava.
Mas, que vazava, vazava.
A torcida aumentou, e eu, sozinha em casa, só podia mesmo torcer. Agora, não sabia se desligava ou deixava acesa a boca do fogão, se fazia ou não fazia o chimarrão, se rezava o Pai Nosso, ajoelhava no milho ou tentava achar o buraco por onde escapava o gás e, com a boca, aparava o vazamento.
Na dúvida, larguei a chaleira com água em cima da boca acesa - não se mexe em time que ganha, pensei, vai que eu apago aqui e o gás vazado vem justamente querer se mancomunar com esta faísca, aí estou perdida. Chiava a chuva, chiava o escapamento do gás, chiava a água na chaleira, e chiava ainda a panela de pressão da vizinha. E tudo fedia. Mas fedia forte, mesmo.
Saio correndo, apavorada, decidida a telefonar para os bombeiros. O rapaz do conserto, até agora, nada. Estou no corredor, ensurdecida pela chiadeira insistente, quando um estouro súbito e assustador me faz agachar no chão. Se for tiro, ouvi dizer que assim me escapo. Mas não era. Escangalhou-se algum transformador da rede elétrica, e a luz se foi embora. Bem agora!
De quatro, e no escuro, ando até o telefone, mas é tudo em vão - que o telefone é sem fio, e, portanto não funciona sem luz. Dou meia volta, quero retornar à cozinha, fazer sei lá o quê, mas exagero no giro e dou com a testa na parede, onde sou obrigada a parar por uns segundos: recuperar os sentidos todos, lembrar do meu nome, idade, e sentir que o gás agora fede sem freios. Pavor.
Em posição de invejar militar treinado, agachadíssima, arrasto-me até a cozinha, e constato o pior - que a ventania entrou pela janela, aberta para sair o gás, e veio justamente soprar na boca do meu fogão. Agora, vazava gás também pelo fogão; era o fim. O cheiro? Nem ouso descrever.
Estou prestes a colocar um fim no meu desespero, naquela angústia toda, na minha própria vida. Procuro, aflita, uma caixa de fósforos. Se eu acendo isso aqui, penso, termino por explodir a casa toda, e descanso em paz. Não sei onde, mas qualquer inferno deve ser menos pior do que essa bomba atômica em que transformei o meu próprio lar. Chega, vou dar cabo de mim.
Quando achei o fósforo, ouvi três batidas na porta. Só pode ser o cara do gás. Abro ou não abro? Se não abrir, me mato. Se abrir, corre o risco de ele explodir com tudo isso, e ainda levar a fama que seria minha. Mas quem é o estúpido que interrompe o único suicídio da minha vida, assim, na maior? E com que direito? Pode ser um anjo - não tinha pensado por esse lado. Vou abrir.
Fora o uniforme, que era cor de abóbora - ou moranga, nunca sei a diferença -, podia mesmo ser um anjo. Tinha um sorriso delicioso, um par de olhos pretos, grandes, e as sobrancelhas desenhadas com capricho. A boca imensa, claro.
- Bom dia. Foi aqui que pediram conserto do aquecedor?
- Entra... - foi o que eu pude dizer.
Voltou a luz. Parou a chuva. Um lindo sol surgiu por entre as nuvens, e iluminou a minha casa, a varanda, a vida. O chiado parou, afinal, era só a panela de pressão da vizinha. O que fedia era, não o aquecedor - até porque não havia vazamento algum -, nem tampouco eu, mas meio quilo de carne moída que eu havia esquecido, há dois ou três dias, em cima da máquina de lavar. E caiu dentro do tanque, onde apodreceu, entre moscas e pingos d'água. Bem que eu tinha estranhado; o barulho do vazamento daquela torneira tinha mesmo mudado de uns dias pra cá.
O anjinho cor-de-abóbora trocou uma pecinha inofensiva do aquecedor, e ainda deu um sorriso ingênuo, "olha, a danadinha tava ruim mesmo, tinha que trocar."
Tinha que trocar. Claro que tinha. E eu fiquei ali, admirada, enquanto ele consertava o aquecedor, a torneirinha do gás, e colocava no lixo a carne podre, dizendo e sorrindo "acho que estragou..."
Eu tinha esquentado a água:
- Aceita um chimarrão?, arrisquei.
- Chima o quê? Ah, aquele chazinho que os gaúchos colocam num copinho de madeira, e chupam num canudo de ferro, né? Vou querer provar, sim, se a senhora me dá licença.
Apresentei: cuia e bomba, anjinho cor-de-abóbora; anjinho cor-de-abóbora, cuia e bomba. Muito prazer. E tomamos o mate; ele, entre risos e caretas; eu, entre ele e o meu pensamento.
O pensamento que me puxava a orelha, dizendo que, quando menos se espera, cai do céu um anjo para nos salvar a vida, e ainda fazer companhia no chimarrão. Um anjo de abóbora; ou moranga, não importa.
O certo é que Deus volta e meia está mandando alguém para consertar algumas coisas na gente.













17 junho 2001

Aboletada na memória
Bíbi Da Pieve

Onde será que a gente fica quando está voando na memória, observando o passado?

Quando lembro os tempos de criança, uma cena me vem à cabeça, e eu revejo tudo, como se estivesse mesmo lá. A questão é: será que não estou?

E, se estou, será que não me falta espaço? Será que não fica apertado? Desconfortável?

Foi refletindo sobre isso que eu decidi criar uma poltrona vaga. Sempre que alguma coisa boa estiver acontecendo, eu preciso me lembrar de mim; lembrar que eu, no futuro, posso querer voltar e dar uma olhadinha naquela cena de novo. Nada mais justo do que guardar um lugar para mim mesma.

A gente nunca sabe o dia de amanhã. Posso enlouquecer e resolver morar na Índia. Quando estiver lá, vou sentir saudade do calçadão e da água-de-coco, não vou? Então. Já reservo uma cadeira, e enfio dois canudinhos no coco - que comprar dois já seria demais, convenhamos, eu que beba muita água lá na Índia, antes da viagem, e pronto.

O ser humano vai ficando velho, e as idéias cansam de morar certinho dentro da cabeça da gente. Começam a querer fazer baderna lá. Tudo bem, eu penso que ninguém vai se chatear pelo fato de eu (hoje!) querer ser solidária comigo mesma (amanhã!). Isso é que é seguro de vida!

Conforme o tempo vai passando, vamos precisando de um certo conforto. Já não encaro aqueles festivais de rock, por exemplo. Além disso, quanto mais anos vivemos, mais longos são os vôos de memória. Já se vai longe a infância, meu amigo; não é nenhum Rio - São Paulo, não! Sem contar que há muito mais lugares para eu visitar, à medida que vou saindo deles.

Tudo isso conta. É coerente que eu queira me aboletar de maneira muito cômoda quando vier me visitar; afinal, devo me sentir sempre em casa.

Neste momento, por exemplo, eu posso estar aqui comigo. Nesse caso, permita-me dizer a mim mesma: querida, fique à vontade. Não se assuste, isto é só um vôo de memória. Na verdade, nada do que você vê está realmente acontecendo com você agora, mas sim comigo. Ou, melhor - com você, já aconteceu.

Na verdade, somos a mesma pessoa, e você só está confortavelmente instalada aqui porque eu tive o cuidado de providenciar a infra-estrutura necessária para que tudo corresse bem na sua viagem. Não é maravilhoso? Garanto que você está adorando.

Se você veio do ano que vem, querida, peço que não se demore muito, se não se importar. Sabe como é, a fila é grande; pretendo passar dos 80. Se bobear, já tem uma de nós com setentinha de ficha na mão, vamos lá, respeite-me idosa.

Pois não? A senhora pode entrar, e ficar quanto tempo desejar!
Quantos anos? Ah, me desculpe, que indiscrição. Mas, afinal, não estamos só entre... mim? Deixe de frescura, diga logo quantos anos eu tenho!

83??? Maravilha!

O negócio é o seguinte; pra senhora, eu posso abrir o jogo. Tá vendo essa ficha aqui? Pode começar a preencher. Onde mora, quantos filhos, situação financeira, psicológica, matrimonial... a partir de 2001, eu quero saber de tudo!

Ou vai me dizer que acreditou naquele papo romântico de solidariedade comigo mesma? Ora! Bem que vê que a senhora não me conhece!!!
O homem do calçadão
Bíbi Da Pieve

Pensei que fosse só uma caminhada normal, corriqueira. Saí de casa, como sempre, em direção à praia, tranqüilamente. Não sabia o que me esperava naquele dia.

Sempre ouço falar em atropelamento; vejo no cinema, até quase atropelei um cachorro quando estava aprendendo a dirigir. Faz muito tempo. Mas sempre pensamos que essas coisas só acontecem com os outros.

Foi no calçadão da praia, mesmo. O sol já ia mergulhando naquela antena parabólica de sempre, lá no outro lado da rua. Eu olhava o dourado reflexo no mar, e ouvia Gil no walkman. "Tem que morrer pra germinar..."

O peso do walkman na minha cintura, do lado direito, sempre dá a falsa impressão de que o short vai cair. Mas não vai. Nunca caiu. Não seria agora. Eu sei que não cai; só fica um pouquinho repuxado ali. Mesmo sabendo, eu me distraí. Por alguns segundos, fiquei brincando de puxar o short pra cima; dava mais dois passos, ele caía, eu puxava de novo. Tudo em vão. Se eu soubesse do perigo que corria, não me entregaria a tal distração nem por um instante. Mas a gente nunca sabe.

Foi então que, de repente, aquilo surgiu do nada. E me atropelou, de maneira covarde, reduzindo-me a pó. Foi como se o mundo todo assumisse um tamanho milhões de vezes maior do que a sua real dimensão, de modo que só posso concluir que não foi ele que aumentou - mas eu que diminuí, esfarelando-me, lenta e dolorosamente, a partir do momento em que aquilo me atropelou. Em pleno calçadão da praia.

Aquilo deveria ter uns trinta e poucos anos. Usava um par de tênis cuja placa não pude anotar; mas sei que não eram sujos, nem limpinhos demais. Não havia meias. Direto do cano dos tênis, surgia um par de tornozelos perfeitos, que, não contentes, ainda culminavam nas batatas, aquelas batatas, as batatas da perna, que brotavam sabe lá Deus de que natureza, e que reinavam, rígidas, marcantes, decididas, descascadas e
descaradas, bem na minha frente.

Um já me bastaria, mas aquilo tinha dois joelhos, de onde surgia o par de coxas mais exatas que eu já vira em toda a minha vida. O número certo de pêlos; nem um fiozinho a menos, nem um a mais. A tensão dos músculos, a cadência, a tonalidade - enfim, a personalidade toda, caprichosamente traçada pelo Divino naquelas pernas cinematográficas.

Usava um short preto e branco, e uma camiseta branca. Lisa. Simples. Básica. Só. Coisa de quem não ousa sobrecarregar o colorido da própria natureza. E faz bem. Panos dispersam.

Fosse tudo isso, como de fato era, e corresse pela praia, como de fato corria, não me atropelaria - se não fosse pelo desaforado pecado que sua cabeça cometia: desciam dela, como uma cascata de caramelo, milhares de fios de um cabelo castanho-dourado, meio liso, meio cacheado, que desaguava nas rochas fortes daqueles fartos ombros. Era o meu fim.

Quando dei por mim, já totalmente derrubada e evaporada, o Gil ainda me soprava no ouvido: "dura caminhada..."

Ainda não sei se aquela figura existiu mesmo, ou se foi apenas uma alucinação resultante do chá de pôr-do-sol naquela xícara parabólica, maresia, vento e Gil. Se eu raciocinasse rápido, poderia ter caído no chão. Nesse caso, se eu tivesse o narizinho e as pernas da Sandrinha (Bullock, claro), certamente aquele moço, fosse fictício ou não, teria ido me juntar na ciclovia. E, sem sombra de dúvida, tascaria um beijo apaixonado bem no meio da minha boca vermelha. E seríamos felizes para sempre.

Mas, como a dura caminhada era tão concreta quanto aquele calçadão, só me resta viver o resto dos meus dias com a cruel incerteza - não sei se aquele homem existia mesmo.

Certos homens nascem da gente; depois choram, depois crescem, depois morrem - lá fora.

Outros, nascem na gente. Depois choramos, depois crescemos, depois morremos - aqui dentro. Sem que eles sequer tenham existido, um dia, lá fora.

Não sei se o homem do calçadão é um homem de verdade. Mas posso adiantar que, existindo, ele não faz muita justiça.

16 junho 2001

Eles que se cuidem!
Bíbi Da Pieve

Em Copacabana, mais uma vez, houve assalto dentro de um ônibus. A arma, descobriu-se depois, era de brinquedo. Mas não avisaram a cobradora, uma mulher de 42 anos, que, visivelmente, não estava para brincadeira.

***

Eu tinha uns dez anos, e era presidente da turma. Fora eleita, pela maioria dos meus coleguinhas, para este importante cargo. A professora dizia que eu deveria zelar pela harmonia do grupo, sendo responsável pela ordem e união de uma classe de mais de trinta pimpolhos. Adorei a idéia.

Juntamos dinheiro, os pimpolhos e eu, vendendo bolo de cenoura e chocolate. Queríamos uma bola de vôlei. Conseguimos comprá-la. Eu era uma boa presidente.

Às vésperas do primeiro torneio de vôlei, a bola sumiu. Foi aquilo. Todos ficaram chocados; havia um ladrão mirim entre nós, e precisávamos descobrir quem era.

Como presidente, fui muito cobrada. Trinta e poucos eleitores exigiam que eu tivesse pulso suficiente para tomar uma atitude rígida, uma medida realmente severa, que pusesse fim naquele mistério. E eu não tinha nem uma vaga idéia de que medida poderia ser aquela.

Passei noites em claro, apavorada; só pensava no escândalo da bola de vôlei. Como saber quem a tinha roubado? E se, por acaso, tivesse sido uma amiga minha? Como ficaria a minha imagem? E se a bola simplesmente tivesse se perdido de nós, assim, como bola que rola, escada abaixo, buraco adentro, nunca se sabe, e nunca mais se acha? À época, ainda não se falava em CPI.

No dia do tão esperado torneio, estávamos todos reunidos na quadra de vôlei, esperando. Eu havia feito um apelo dramático, um dia antes: fui à mesa da professora, virei-me para aquela pequena nação, e supliquei, quase lacrimejante, que o gatuno devolvesse a bola, na calada do meio-dia, como quem não quisesse nada, no mesmo lugar de onde a havia roubado. O caso seria abafado, e faríamos um lindo torneio.

Mas a bola não apareceu.

Particularmente, eu suspeitava de um menino. Ele tinha atitudes estranhas, e era a figura que mais se alterava quando tocávamos no assunto da bola. Tinha cara de pessoa que roubava bola de vôlei só para ver o circo pegar fogo. Não que precisasse; ganhava uma boa mesada, o pai era médico famoso. Mas ele não me enganava, eu tinha certeza que algo esquisito havia ali. E nunca tinha ido muito com a cara dele, mesmo.

Pois foi justamente o Maurício quem resolveu incendiar a discussão, no dia do jogo que não aconteceu. Via-se, claramente, que ele jogava a opinião pública contra mim, gritando que a culpa era das autoridades, e que, de duas, uma: ou eu dava um jeito de providenciar outra bola no ato, ou se elegeria alguém mais competente para o cargo da presidência.

Eu fui ouvindo aqueles desaforos todos, mas sabia que precisava manter a calma. Sempre fui muito contida e racional. Não seria inteligente da minha parte, só porque ele me ofendia, descer ao baixo nível em que já se encontrava aquela discussão. Eu teria cautela. Não fosse o Maurício ter tocado num ponto crucial:

- FORA, QUATRO-OLHO!!!!!!!

Eu tinha começado a usar óculos naquele ano. E odiava. Sofria muito com o preconceito. Saía do sério.

Quando dei por mim, estava montada em cima do Maurício (já caído no chão), enchendo aquela boca suja de murros. E ameaçando:

- Agora você não vai mais precisar usar aparelho, porque eu vou consertar estes dentes da frente é na mão mesmo!!!

Não houve jogo. Naquele mesmo dia, renunciei ao meu cargo, por - sabiamente - concluir que não tinha sangue de barata suficiente para lidar com política. O Maurício, coitado, acabou com os dentões da frente jogando lá na zaga.

***

Mas, voltando ao assalto em Copacabana: a cobradora se grudou no pescoço de um dos assaltantes, e explodiu num ataque irado que terminou rasgando o rosto do sujeito a socos. O azarado foi preso. O outro bandido, mais ágil, conseguiu escapar - da cobradora, não da polícia - pela porta de trás.

Não entendo nada de comportamento feminino, mas, seja lá o que isso signifique, percebo que alguma coisa está mudando. E, sempre que posso, aviso aos homens que me são caros: cuidem-se, por favor. Foi-se o tempo em que a nossa maior agressão era deixar acumular roupa suja. Agora, resolvemos as nossas sujeiras de um modo menos meigo. Foi-se o tempo.
Minhoquice crônica
Bíbi Da Pieve

Fico me segurando, o tempo todo, para não cair no texto filosofante eterno. Sabe aqueles textos enormes, quase sem ritmo, que começam com uma idéia, e vão para outra, e outra, e acabam achando uma ligação esquisitíssima entre elas, até que você começa a desconfiar seriamente das condições mentais do autor? Aí você passa pela fase da dúvida - será que o doido aqui sou eu? -, e, invariavelmente, termina concluindo que, sim, o maluco é você, e ponto final.

Certamente, caro leitor, eu sou uma filosofante enrustida. Confesso.
Faço de conta que não sou, mas, quando estou a sós com a minha caneta e o meu confidente cadernão universitário, meu amigo, não queira ler aquelas enfadonhas e mal pontuadas linhas.

Estou me sentindo como uma falsa-loura-siliconada-que-fez-15-plásticas-e-ainda-acha-pouco, mas é preciso mostrar a mole realidade: meu texto - o verdadeiro, não este aqui - é cheio de pelancas. E celulite.

A minha letra, pra começar, é um desastre. Letra insegura, sem caráter. Acredita que ela ainda não se decidiu para que lado cai? Isso é até uma questão política, eu insisto com ela, mas a danada teima em cair cada dia para um lado diferente.

Os assuntos sobre os quais discorro, sem a mínima propriedade - mas cheia da moral! -, vão de religião a rock'n roll, passando pela psicologia - e ficando umas boas páginas por lá. Sim, porque todo chato pensa que é psicólogo. Não fujo à regra.

Aqui está o meu cadernão, que não me deixa mentir. Observo as primeiras linhas, e já embarco num rocambole interminável de idéias obesas e perfeitamente dispensáveis, de modo que meu próprio senso crítico de leitora já trata de providenciar o bote salva-vidas. E pulo fora. Nem eu me leio.

O problema começa quando sinto uma irresistível atração por um pensamento - pode ser qualquer um, estou falando sério! -, agarro-me naquilo, com toda força, e saio a galope para nunca mais voltar. Pronto. Todas as minhas idéias são uma passagem só de ida.

É claro que eu sempre filosofo buraco abaixo. Se for para concluir que a vida é bela, é melhor que não se pense muito. Eu levo muito a sério esta coisa de filosofar; não vejo graça nenhuma em ficar construindo castelinhos de areia, não, vou logo esburacando, para ver o que há lá embaixo.

O amigo leitor, depois desta amarga confissão, deve estar se perguntando, afinal, como é que eu faço para não trazer todos os meus vícios textualmente suicidas para uma coluna como esta. Por que eu não me entrego aos prazeres patológicos da filosofia aborrecida?

Simples: eu procurei ajuda.

Foi um amigo escritor que me salvou, um belo dia, quando eu ia esquentando os motores da minha escavadeira filosófica; ele virou-se para mim, e observou, com honestidade:

- Credo! Mas você minhoca demais!!!

Minhocar - pensei. O que viria a ser minhocar? Minhocar, como assim? Minhocar, mas em que sentido?

Passei uma semana inteirinha no subsolo do meu cérebro, minhocando sobre o ato de minhocar. Tudo o que eu minhocava, registrava no meu cadernão. Naquela semana, mal saí de casa. Não podia: precisava minhocar, "devagar e urgentemente", para descobrir quais seriam as causas, as conseqüências, os benefícios e os malefícios da minha minhoquice crônica.

No sétimo dia, desencanei. E escrevi um leve texto, sucinto, esbelto, objetivo e até bem divertido.

Finalmente, eu estava curada. Não da minhoquice crônica - porque continuo filosofando desvairada e descaradamente -, mas da falta de solidariedade. Hoje em dia, minhoco no meu canto; sei que não é legal fazer dos outros minhocantes passivos.

Minhoco, solitária, e ainda engulo a minha fumaça. Faço isso durante seis dias. No sétimo, escrevo uma crônica.
O alheio
Bíbi Da Pieve

O que é que interessa, na vida da gente, se não a vida dos outros?

Os meios de comunicação, trocando em miúdos, são fofocagem explícita. Não no mau sentido; entenda. Comunicação - convenhamos! - é falatório. Troca de informação.

Informação nada mais é do que um fato que se espalha, estou errada? Tenha a paciência.

A primeira coisa que você faz, de manhã, antes mesmo do seu filho acordar, é olhar para a cara de um jornal e dizer - bom dia. Bom dia, mundo.
Bom dia, manchetes. Bom dia, informação (termo eufemísitico que quer dizer: especulação sobre a vida alheia).

Não sei que grande encanto o ser humano tem por ele próprio, de modo a criar enormes livros sujos diários que só têm a finalidade de discorrer sobre a vida dos outros, mas o fato é que, fora o horóscopo e os quadrinhos, tudo o mais é uma convicção descabida e pretensiosa sobre o alheio. E eu acho ótimo. Mas, que é esquisito, é.

Uma professora de yoga me dizia que meditar era o ato de eu me encontrar comigo mesma, e eu ia fundo. Meditava mesmo. Marcava hora, e tudo. Hora comigo mesma. Sempre fui meio britânica com essas coisas; não foi difícil meditar em ponto. Só tinha um problema terrível: faltava-me o alheio.

A humanidade é totalmente voltada para o alheio. Tudo bem, o Ocidente; que o Oriente é mais dado a meditações, e até deve ser por isso que eles têm os olhinhos apertadinhos - de tanto olhar para dentro.

Do lado de cá, nós, olhudos, passamos a vida toda apreciando o verde do gramado do vizinho - e falando mal dele. Tivemos o trabalho de organizar os assuntos - política, economia, saúde, país, mundo, diversão -, e ainda criamos uma escala de importância para eles. Tamanha a nossa vontade de furungar na grama dos outros. Veja a que ponto chegamos.

Só pode ser o tal narcisismo. Não pode ser que ninguém perceba isso. O ato de bisbilhotar no alheio nada mais é do que a adoração do próprio reflexo. Estamos vidrados na nossa imagem. A "era da informação" é isso: a humanidade, penteando o cabelinho.

O ápice do narcisismo moderno é a Internet; o nosso imenso espelho virtual. Sim, porque, ali, a informação é rápida. Quanto mais veloz (e nítido) for o reflexo, tanto melhor o espelho é. É por isso que estamos nesse clima quase orgástico de deslumbre.com!

Quem procura, acha. Não é de hoje que estamos penteando o cabelo em frente ao espelho. Muito bonitinho, esse ritual. Acontece que, mais cedo ou mais tarde, podemos acabar dando com os burros n'água. E eu fico me perguntando: já pensou se descobrimos, um belo dia, que somos um imenso tribufu? Temos fortes indícios, confesse. Ou você não lê os nossos espelhos
periódicos? Desse jeito, não haverá bisturi que dê conta.

Estamos assediando demais o alheio. Eu dizia, lá em cima, que "informação nada mais é do que um fato que se espalha". Deixa eu corrigir: informação nada mais é do que um fato que se espelha.

A minha professora de yoga é que tinha razão. Melhor mirar um pouco para dentro, agora. Quem sabe, se cada um descobrir o tribufu por conta própria... pode ser que ainda dê jogo.