10 março 2005

As pontas do tempo


Vieram muitas coisas à minha memória nesses dias. Sempre tive a sensação (ilusão? - eu gosto igual) de que, em determinados momentos da vida, as pontas dos lençóis vão se encontrando - e a gente vai dobrando o tempo, aqui e ali, unindo passado e presente num só gesto, numa só reflexão, sacada. Às vezes, num só golpe.

Mas tudo isso é fazer a cama dos dias. Não importa se mais ou menos doces, mas dias, dias e dias – é o que temos por aqui.

Em alguns dias, parece que a coberta encolhe a ponto de se tornar um lenço - e aí se aproveita para chorar. Noutros, sentimos como a navegar por lençóis d’água tão imensos, tão frescos e tão macios, que nos resta relaxar e gozar o balanço. Sem questionar a estrutura da cama, se há cama, se há guarda, se há chão, céu, qualquer porcaria que se crie para submergir de um sonho bom. Épocas de lençóis d’água, das quais herdamos memória aquática - aquela imagem sutil, azulada, tenra, difusa. Bêbada. Algumas coisas eu nem sei se aconteceram de verdade, em qual verdade se deram, em qual colchão ou espuma de realidade. Mas juro que vivi.

Unir as pontas do tempo é lembrar uma fantasia de infância, sem pé nem cabeça, que um dia então inventa de cair – cabeça, pé, corpo, saias, rendas e babados – na sua fase adulta, na maturidade, na velhice. Você arruma um emprego qualquer e o lençol apresenta suas pontas: cai uma pluma do passado no agora, e o barulho produzido é coisa que não se explica. Se apavora, se estranha, se reza, se benze, se admira e se convence. Ou não se convence. Mas a cama vai se fazendo igual, independente da crença.

Eu já me peguei tropeçando nas minhas tranças de menina. Desavisada, achei que eram cobras. Atrevida, quis matar no tapa mesmo.

Só percebo
que são as pontas do tempo
quando abro o berreiro
e não sei mais se sou
a mulher
que chora pelo medo das cobras que não morrem
ou a menina
que chora pela dor dos tapas que não matam.