29 maio 2004

O programa de TV que ensina a ser artista



É com alegria e satisfação que eu lembro a vocês: começa mais uma edição do meu, o seu, o nosso programa Fama, da Rede Globo!

Lá vamos nós, telespectadores fiéis, acompanhar o dia-a-dia de um grupo de malabaristas das cordas (digo: pregas, que é o termo correto) vocais. Interpretando sucessos de Gonzaguinha a Djavan, de Ivete Sangalo a Caetano, transformarão suas toscas performances em exibições classudas, repletas de técnicas e arranjos musicais, vocais e cênicos.

Tudo para mostrar que “vida de artista é suada”. Que, se você quiser “aprender a ser artista”, tem que estudar muito, saber onde colocar o agudo, o grave, o olhar e a mãozinha que não está segurando o microfone.

Depois de apreendido um mundo de informações que lhe enriquecerão como nunca antes, você finalmente virará um artista completo, e poderá encher a boca para dizer: eu sou um artista.

Então, um empresário se materializará na sua frente, de terno azul-marinho, e lhe fará uma proposta irrecusável: um contrato com uma gravadora multinacional, tudo pago para a gravação do seu disco (sim, eles estão nadando em grana, como todos nós), lançamento, mídia, 200 shows por ano, e uma banda impecável para acompanhá-lo.

Você jamais terá que lidar com contratante canalha, equipamentos de som precários, palcos mal projetados, assessoria de imprensa mal feita, bêbado subindo no palco pensando que o seu show é karaokê, cachês simplesmente não pagos (e toda ação que você terá de mover na justiça nesses casos), operador de som displicente, músicos que somem na hora da passagem de som, e a própria passagem de som (momento crucial do show, onde o abacaxi começa a ser descascado e só vai terminar na manhã seguinte, com sorte).

É claro que você também não precisará se incomodar em fazer malabarismos com o seu orçamento doméstico, se quiser sobreviver de música neste país, nem tampouco com os perigos que assolam cada vez mais as cidades, sobretudo à noite, justo quando você sai de casa para trabalhar. Por fim, você jamais terá de ficar chateado quando o pai da sua nova namorada, ao ouvir que você vive de música, perguntar:

- Sim, mas você trabalha no quê?

Ainda bem que você é um artista de verdade, e não terá de se aborrecer com esses pormenores.

Sim, porque isso você só teria aprendido a resolver se tivesse enfiado a cara na rua, meio sem jeito e sem trejeitos de artista, e tivesse ido tocar em bares, clubes e churrascarias, lidando com todo tipo de gente, tocando para todo tipo de público, estudando quando houvesse tempo, aborrecendo uns, agradando outros; se tivesse dedicado, enfim, sua vida (ou um pedaço dela) à difícil tarefa de viver de arte num país de oportunidades miúdas e valores equivocados.

Mas isso não é ser artista, uma vez que não aparece no Faustão.