18 junho 2001

As pessoas do conserto
Bibi Da Pieve

Acordei, de manhã. Já se estranha o fato. Levantei, o que é um agravante, suavemente, será que sou eu mesma?, andei até o espelho, isso inspira cuidados, e sorri. Sorri? Vai chover.
A previsão do tempo é precisa; vai chover, sim, e não é pouca água. Jamais sorrio pela manhã, principalmente porque, não raro, e muito justamente, estou dormindo por estas horas. E, se calha de eu me achar desperta, acidental e equivocadamente, ralho com os móveis, com as paredes, com o ar, com a vida e com tudo o que se apresenta diante de minhas conhecidas remelas.
Pelo menos não sorri para mim. Não, isso nunca. Ao dar de cara com a minha ameaçadora imagem matinal, já desvio o olhar por cima de meu ombro refletido no espelho, e capto, com o rabo do olho, lá em cima, no cantinho, um pedaço aberto da janelinha que me anuncia o cinza confortável do dia. Pelo menos não teremos uma manhã ensolarada; já que tenho que ficar acordada, é bom que não me venha agora um raio de sol, se enfiando por qualquer fresta, querendo atenção. Sorri para a chuva que previ, e fiquei na torcida. Que venha a água.
Finalmente, antes que eu tornasse a desabar na cama, lembrei-me do motivo pelo qual me encontrava na vertical tão cedo. Diacho, marquei com o rapaz do gás. O aquecedor pifou, e ninguém toma banho há dias. Sobrou para mim.
Às dez horas, dei-me conta de que cheirava não muito bem. Na dúvida, afastei-me do aquecedor, e pude comprovar, com certo alívio, que o que fedia era, não eu, mas o aparelho. O conforto veio, mas subitamente se evaporou, quando resolvi pensar um pouco melhor na situação. Se o aparelho fedia, é que vazava gás. E, se vazava gás, o perigo era dos grandes.
Comecei a torcer para o fedor ser meu, muito meu; eu tinha que feder, estava certa disso, dei uma corridinha até a sala e voltei à cozinha, duas vezes, eu tinha que me convencer - aquele bodum provinha de minhas axilas, ou de qualquer outra parte da minha anatomia, não importava qual.
Tudo, menos vazamento de gás.
Jamais desejei tanto cheirar mal, mas, quanto mais desejava, mais sentia que o odor proveniente do aquecedor era tão evidente quanto a chuva que, àquelas alturas, não tardaria. E não tardou mesmo, de modo que o aguaceiro se desvencilhou das nuvens antes mesmo que eu pudesse colocar a chaleira no fogo para o chimarrão.
Depois que acendi a boca do fogão, lembrei, entre risadas nervosas, que não se deve produzir faísca onde haja algum vazamento de gás. E o gás, que não era bobo, já se fazia mais notado do que o barulho da chuva. Porque chiava, o danado, ainda que eu nem imaginasse por onde diabos tanto vazava.
Mas, que vazava, vazava.
A torcida aumentou, e eu, sozinha em casa, só podia mesmo torcer. Agora, não sabia se desligava ou deixava acesa a boca do fogão, se fazia ou não fazia o chimarrão, se rezava o Pai Nosso, ajoelhava no milho ou tentava achar o buraco por onde escapava o gás e, com a boca, aparava o vazamento.
Na dúvida, larguei a chaleira com água em cima da boca acesa - não se mexe em time que ganha, pensei, vai que eu apago aqui e o gás vazado vem justamente querer se mancomunar com esta faísca, aí estou perdida. Chiava a chuva, chiava o escapamento do gás, chiava a água na chaleira, e chiava ainda a panela de pressão da vizinha. E tudo fedia. Mas fedia forte, mesmo.
Saio correndo, apavorada, decidida a telefonar para os bombeiros. O rapaz do conserto, até agora, nada. Estou no corredor, ensurdecida pela chiadeira insistente, quando um estouro súbito e assustador me faz agachar no chão. Se for tiro, ouvi dizer que assim me escapo. Mas não era. Escangalhou-se algum transformador da rede elétrica, e a luz se foi embora. Bem agora!
De quatro, e no escuro, ando até o telefone, mas é tudo em vão - que o telefone é sem fio, e, portanto não funciona sem luz. Dou meia volta, quero retornar à cozinha, fazer sei lá o quê, mas exagero no giro e dou com a testa na parede, onde sou obrigada a parar por uns segundos: recuperar os sentidos todos, lembrar do meu nome, idade, e sentir que o gás agora fede sem freios. Pavor.
Em posição de invejar militar treinado, agachadíssima, arrasto-me até a cozinha, e constato o pior - que a ventania entrou pela janela, aberta para sair o gás, e veio justamente soprar na boca do meu fogão. Agora, vazava gás também pelo fogão; era o fim. O cheiro? Nem ouso descrever.
Estou prestes a colocar um fim no meu desespero, naquela angústia toda, na minha própria vida. Procuro, aflita, uma caixa de fósforos. Se eu acendo isso aqui, penso, termino por explodir a casa toda, e descanso em paz. Não sei onde, mas qualquer inferno deve ser menos pior do que essa bomba atômica em que transformei o meu próprio lar. Chega, vou dar cabo de mim.
Quando achei o fósforo, ouvi três batidas na porta. Só pode ser o cara do gás. Abro ou não abro? Se não abrir, me mato. Se abrir, corre o risco de ele explodir com tudo isso, e ainda levar a fama que seria minha. Mas quem é o estúpido que interrompe o único suicídio da minha vida, assim, na maior? E com que direito? Pode ser um anjo - não tinha pensado por esse lado. Vou abrir.
Fora o uniforme, que era cor de abóbora - ou moranga, nunca sei a diferença -, podia mesmo ser um anjo. Tinha um sorriso delicioso, um par de olhos pretos, grandes, e as sobrancelhas desenhadas com capricho. A boca imensa, claro.
- Bom dia. Foi aqui que pediram conserto do aquecedor?
- Entra... - foi o que eu pude dizer.
Voltou a luz. Parou a chuva. Um lindo sol surgiu por entre as nuvens, e iluminou a minha casa, a varanda, a vida. O chiado parou, afinal, era só a panela de pressão da vizinha. O que fedia era, não o aquecedor - até porque não havia vazamento algum -, nem tampouco eu, mas meio quilo de carne moída que eu havia esquecido, há dois ou três dias, em cima da máquina de lavar. E caiu dentro do tanque, onde apodreceu, entre moscas e pingos d'água. Bem que eu tinha estranhado; o barulho do vazamento daquela torneira tinha mesmo mudado de uns dias pra cá.
O anjinho cor-de-abóbora trocou uma pecinha inofensiva do aquecedor, e ainda deu um sorriso ingênuo, "olha, a danadinha tava ruim mesmo, tinha que trocar."
Tinha que trocar. Claro que tinha. E eu fiquei ali, admirada, enquanto ele consertava o aquecedor, a torneirinha do gás, e colocava no lixo a carne podre, dizendo e sorrindo "acho que estragou..."
Eu tinha esquentado a água:
- Aceita um chimarrão?, arrisquei.
- Chima o quê? Ah, aquele chazinho que os gaúchos colocam num copinho de madeira, e chupam num canudo de ferro, né? Vou querer provar, sim, se a senhora me dá licença.
Apresentei: cuia e bomba, anjinho cor-de-abóbora; anjinho cor-de-abóbora, cuia e bomba. Muito prazer. E tomamos o mate; ele, entre risos e caretas; eu, entre ele e o meu pensamento.
O pensamento que me puxava a orelha, dizendo que, quando menos se espera, cai do céu um anjo para nos salvar a vida, e ainda fazer companhia no chimarrão. Um anjo de abóbora; ou moranga, não importa.
O certo é que Deus volta e meia está mandando alguém para consertar algumas coisas na gente.