18 abril 2004

Da série “Mulher é Bicho Triste”

I - Atrás da perfeição

No banheiro do Barrashopping, uma mulher se olhava insistentemente no espelho. Uns trinta, trinta e poucos anos. Tipo da mulher caprichosa, alinhada; calça e blusa combinando, tudo muito verdinho. O cabelo-farmácia fazia o telhado cor de barro vermelho. Assim, falando, parece gozado, mas o todo era bem comportado. Magra e baixa, ainda.

Entrei, fiz o que eu tinha que fazer, olhei no espelho. Ela continuava naquela. Pose pra lá, pose pra cá, biquinho, mão no cabelo, sobe a calça, ajeita o decote, e tudo de novo. Estou quase saindo, ela me ataca:

- Tá legal, hein?

(Legal, o quê? Se eu estava legal? Ou ela? Ou a roupa? Ou o batom? Ou o cheiro do banheiro? Na dúvida...)

- Sim, muito legal.

- Mas eu digo a calça...

- Justamente. Muito, muito legal. A calça.

- Mas você nem viu atrás!

- Vira, então.

Virou. Até onde eu entendo de bunda de mulher, tudo certinho.

- Continua legal.

- Tem certeza?

- Tenho.

Acho que ela não se convenceu.

- Você não viu, o... o... problema? (De cantinho, cochichando).

O problema, eu já desconfiava, era de ordem psíquica. Mas não quis contrariar. Paciência:

- Que problema?

- Não viu mesmo?

- Na bunda? - arrisquei.

- Meu Deus, você viu!

- Vi nada! Só perguntei, mas não vi problema nenhum. Tem?

- Então, como é que sabia que era na bunda?

Cansei:

- Deus, eu não sabia que era na bunda! Eu não sei da sua bunda, do seu problema, eu não sei de nada! Pra mim, tá tudo jóia: bunda, calça, blusa, tudo! O que há com você, afinal? Tá menstruada? Pode ficar tranqüila que não vazou. É celulite? Imperceptível! Sua bunda me parece uma bunda bacana, normal, uma bunda quase zero km...
- Aí é que está! Você percebeu! Aí é que está!

- Onde? Onde?

- Minha bunda é... eu uso aquelas... comprei ontem, sabe? Aquelas calcinhas que já vêm com a... bunda.

Não é que a bunda era quase zerinho, mesmo? Quase ri.

- Você usa uma bunda falsa. Postiça, é isso? Mas pra quê?

- Porque eu não tenho bunda.

- Ah, não é possível. Bunda, todo mundo tem.

- Menos eu. Minha bunda é reta.

Uma mulher de trinta e poucos, quase chorando na minha frente. A bunda era reta. Eu quis consertar:

- Por outro lado, seus seios não são nada retos, são? Estou vendo que não, hein? Hein? (Risinho de incentivo, como quem elogia criança).

- Eu uso enchimento, também.

Pronto. A mulher era de osso e almofadas! Com sorte, alguma carne. Parei de arriscar; sabe lá o que ainda pode haver de mentirinha nesse corpo. Quis entender:

- Olha, se você usa enchimentos, é porque deve se sentir bem assim. Não?

- Não! Claro que não!

- E por que usa, então?

- Porque sou toda reta. (Me puxou de cantinho de novo) Ninguém em casa!

- Sim, mas agora você tratou de resolver o problema! Não ficou bacana?

- É, acho que sim, mas sinto como se eu estivesse totalmente disfarçada, sabe? Assim, camuflando os erros da natureza.

Sentei. Contou a vida toda. Separou no mês passado. Frágil. Carente. Ainda gosta do ex, que é um canalha. A mãe – uma coroa enxuta, tipo gostosona - vive dizendo que ela é uma tábua, que puxou ao pai: que é uma porta, de burro.

Judiaria. A mulher é super jeitosa! Mas não se gosta.

- Mas você é super bonita, ô...

- Fátima.

- Fátima! Lindo nome. Só tem que se sentir bem, pra ficar mais bonita ainda. E dar um fora nesse canalha de uma vez por todas! Escuta, Fátima, não é possível que você pense mesmo que o seu bem-estar é diretamente proporcional ao tamanho dos glúteos. Não, não é assim que funciona. Funciona você se sentir bem, com ou sem as almofadas - saiu! -, e levar a vida adiante. Pra frente!

Fiquei mais uns minutos, e a convenci a sair dali. Disse-me que já estava há um bom tempo, antes de eu chegar. Senti que melhorou um pouco, mas foi direto ligar pro bundão do ex-marido, com a desculpa porca de pedir que ele fosse trocar uma lâmpada no apartamento que era deles.

- Não é justo, só porque estamos separados, eu ter que trocar as lâmpadas! Não alcanço!

Fiz que concordei, já aproveitando pra me despedir e vir embora.

Divisão de tarefas. Sei.
Queria mesmo era mostrar a bunda nova.