21 outubro 2004

Vovô viu a uva


Aprendia “vovô viu a uva” e ficava pensando o que raios vovô tanto via na uva, entrava dia e saía dia, vovô via a uva, e revia, e revia o diacho do cacho. Vovô ainda não decorou a uva? -, quis saber da professora, porque ela já não agüentava, nem o velho, nem a fruta, nem o desenho, nem o jogral.

Vovô gostava muito da uva. A professora achou que iria acalmá-la com essa revelação medíocre. Vovô gostava muito, e pronto.

Aí ela criou toda uma reação em cadeia. Se vovô gostava tanto assim da uva, que só fazia ver a uva, coitadinha da vovó, que não era vista, e nem havia no desenho ou no jogral. Solidarizou-se com a vovó, levou a sério aquela falta de atenção à velhinha. Como estaria passando a vovó, tia?

A professora argumentava que a vovó ia muito bem, obrigada, mas que não era assunto daquele dia. Concentrassem-se no vovô e sua uva. Mas ela não engolia um casamento entre velho e fruta. Queria saber da vovó, que era a mulher do vovô, que devia ser amada e acarinhada, muito mais que a uva. Uva não dorme junto, uva não beija, uva não pega na mão - e, pior, uva nem faz bolo!

Quando chegou na parte do bolo, os coleguinhas começaram a apoiá-la. Para desespero da professora, que tinha lá uma cartilha a ser cumprida. E não havia menção à velha, coitada.

Naquele dia, excepcionalmente, a aula foi desvirtuada. Vovó era popstar, não havia mais jeito. A professora encerrou o jogral e distribuiu folhas em branco. Cada um vai desenhar a vovó, como quiser. Na cadeira de balanço, na cozinha, fazendo tricô. Depois, vamos colorir a vovó. E o vovô vai ver, não uma, mas 32 vovós!

Todos acharam muito divertido desenhar vovó, e começaram os rabiscos. Os ânimos se acalmaram.

Minutos depois, a professora foi recolher as vovós. Quase todas. Todos tinham feito vovós, menos ela. Tinha desenhado um lindo cacho de uvas.

A professora se irritou. Não era ela quem tinha reivindicado a presença da vovó? Tinha enjoado de vovô vendo a uva? Tinha instigado os colegas? Tinha causado uma revolução? Tinha mudado o rumo das coisas?

Cadê a sua vovó, afinal?

Achou que, com tanta vovó, vovô ia sentir falta da uva. Afeiçoou-se à uva. Tantos dias repetindo, vovô viu a uva, vovô viu a uva... ia ter saudade. Até tinha começado a desenhar vovó. Iniciara pela bolinha do olho direito, depois fizera o esquerdo. Quando viu, já tinha enchido a folha de bolinhas. Decidiu fazer logo um cacho.

Também porque era mais fácil.