02 setembro 2004

As cobras do sonho


Dormi mal pra caramba, sonhei com cobras a noite toda, acordei aflita com a campainha. Era a faxineira, insistente, positiva e operante. Calma, diacho, deixa eu vestir as calças. Saí apertando os olhos, a claridade, o pé ainda meio manco, já vai! Ela bufava do outro lado da porta, impaciente, enquanto eu girava a chave. São duas voltas, bolas!

Bom dia, bom dia. A senhora precisa comprar mais Veja - ela já exigia, e eu pensando que ela é quem precisa comprar mais Época, bolas outra vez! Ah, sim, é Veja Multi-Uso, calma. Eu, logo que acordo, já não sou boa companhia. Menos ainda tendo sonhado com cobras. Vem direto me falar como devo gastar meu suado dinheirinho? Tá pedindo, né?

Tem dia que a gente briga até com a sombra. Hoje foi assim. Cadê que o meu cabelo dava jeito? Já disse, preciso comprar uma cortina urgente, esse sol direto na minha testa, raios, não há Cristo. Cortaram meu celular porque atrasei uns dias. Alguém telefonou pro fixo e desligou na cara de secretária eletrônica, que, como o nome já diz, está aqui para me representar, na minha ausência – ou na minha indecência, ou na deselegância, ou na falta-de-saco’ância - é com ela, e não custa deixar um recado; que eu retorno, sim senhora.

E as cobras, amigo, as cobras do sonho não me deixaram mais em paz durante este dia que não passava; rastejava.

Até que, à tardinha, tocou uma música do Pink Floyd numa rádio inusitada.

E o sol se pôs lindamente, dispensando cortinas.

E o meu cabelo escuro pousou sobre o rosto claro, tão adequado quanto moldura de quadro.

E o mais era conversa fiada; intriga onírica.
As cobras do sonho. Peçonha da oposição.