15 julho 2002

O lugar perfeito


Eu vinha andando pelas ruas, e havia um elemento que, já decidi, é absolutamente necessário para que uma cidade seja perfeita: alguém precisa estar lavando um carro pequeno, de preferência um Fiat Uno, branco ou bege ou cor-de-cinza, no quintal da sua casa, mesmo que seja um quintal apertado e sem muito verde, as portas do carro abertas, inclusive o porta-malas, os tapetes pendurados nos muros, e o rádio do carro precisa estar ligado e com o volume alto, tocando uma balada bem melosa e um pouco heróica, com gritos estridentes, algo do tipo Bon Jovi, refrões que o sujeito acaba de cantar pedindo que máscaras de oxigênio caiam sobre a sua cabeça, tamanho esforço melódico, e depois, sem aviso ou cerimônia, entra um solo de guitarra esvoaçante, a gente vê o guitarrista num penhasco, ele está entre o suicídio e o êxtase, o vento bate nos meus cabelos úmidos, o guitarrista toca mais agudo ainda, uma borboleta colorida pousa em cima do tapete preto de borracha, o dono do Fiat Uno esfrega um pano encharcado sobre o capô, o solo de guitarra vai acabar, minhas pernas amolecem, a borboleta alça vôo rumo ao infinito justamente no exato momento em que o último acorde da balada soa, a última porta do Uno se fecha, a última nuvem cobre completamente o céu e nada mais há para ser feito.

Do outro lado da rua, um cachorro abana o rabo, um passarinho estabanado dá com a cabeça numa folha de árvore, uma criança arrasta a mochila com rodinhas, um senhor desmonta as cadeiras de lata que estão na calçada, porque vai dar chuva, e os clientes vão preferir tomar as suas cachaças no balcão mesmo.

Não fosse o Fiat Uno estar sendo lavado no quintal, nada disso faria sentido, nem o cachorro, nem o Bon Jovi, nem a borboleta, nem a criança - nada seria percebido, nada teria sido escrito, talvez mesmo nada disso existisse ou merecesse acontecer.

No lugar perfeito, sempre existe um gatilho pronto para disparar a beleza: sempre há um carro pequeno a ser lavado, porque o guitarrista está lá, de plantão, à beira do penhasco, louco para libertar a borboleta do tapete preto no último acorde.

Nenhum comentário: