23 fevereiro 2003

Meu (prometido) episódio com os tamancos


Eu sempre fui uma menina sem frescuras, sem papas na língua e sem tamancos. No tempo em que morávamos na casa emprestada da Vó Manoela, eu vestia camiseta do Grêmio e chinelos Havaiana, e ia andar de bicicleta com meu pai e meu irmão. Íamos até a pracinha, onde eu andava em círculos e sonhava em linha reta.

Cresci assim, desprovida de vestidinho e salto, mas sem jamais soltar as tiras.

Foi no Natal passado, e somente no Natal passado, que minha madrinha Maristela, aquariana e amalucada (com perdão do pleonasmo), deu-me de presente o meu primeiro par de tamancos. Belíssimo. Altíssimo. Chiquérrimo. Praticamente um móvel a serviço de meus pés.

Tão feliz e afoita fiquei, que já calcei o presente ali mesmo - deixando meus habituais tênis humilhados, num canto, à espera de pés menos afortunados que os meus. E fui ao salão de beleza mais próximo, a fim de lavar, pintar e polir meus dedinhos outrora enfurnados na minha mais absoluta falta de tamancos.

- Olá, quero fazer os pés! – eu disse à moça do salão, enquanto girava suavemente um dos tornozelos, como quem diz – sabe como é, estou de tamancos...

Parece que ela entendeu o recado. Meus pés ficaram viçosos e brilhantes como nunca.

Agradeci e saí rebolando; fui ao supermercado estrear meu novo “look” – como diria alguém do mundo “fashion”. E era assim que eu estava me sentindo: “fashion”.

Já nos primeiros 100m de calçada, contudo, notei que alguma coisa não ia tão bem naquele Natal de salto alto. Andar num par de tamancos imensos requer certas habilidades que as Havaianas nunca me exigiram, e, pior ainda: havia óleo na pista. Muito óleo.

A moça do salão, evidentemente mal intencionada, tinha empaçocado meus pés com um ordinário creme hidratante que, misturado ao suor que escorria do meu nervosismo óbvio, àquelas alturas, transformava-se numa ameaça à minha posição vertical. A cada passo dado, eu ia empinando o corpo, como quem tem pressa, e iniciava uma luta inútil em direção contrária – inclinando-me para trás, no afã de travar aquele desequilíbrio que, fatalmente, me levaria à capotagem.

Quanto mais brigava contra o óleo na pista, mais deslizava tamanco abaixo. O nariz no chão era questão de minutos.

Cheguei ao supermercado em tempo recorde, e me agarrei ao primeiro carrinho que havia. Foi minha perdição. O amigo-da-onça, ao invés de me brecar, dava-me mais velocidade ainda.

Apavorada, fui troteando como podia. Se soltasse o carrinho, àquela velocidade, certamente andaria uns dois ou três corredores lambendo o chão. Segurei-me ainda mais forte nele, e fosse lá o que Deus quisesse.

Nem preciso dizer que não comprei uma lata de milho. Naquela pressa, era impossível.

Quando cheguei à prateleira dos congelados, esbaforida e desiludida, topei ainda com maior falta de sorte: uma senhora desastrada deixara cair uma lasanha à bolonhesa bem na minha frente, e foi o fim do meu cooper. Meti o pé naquele tijolo gelado, de modo que não vi mais nada.

Devo ter voado uns metros. Quando despertei daquele pesadelo, enfim eu me achava absolutamente parada; literalmente abraçada, pernas e braços, num cabide giratório recheado de – pasmem! – Havaianas.

Minha sorte, se é que se pode assim dizer, foi o providencial defeito do cabide: ele estava emperrado, não girava. Caso estivesse funcionando, provavelmente eu estaria, até agora, naquela órbita de chinelos.

Mas, Deus é pai. Depois de uns minutos agarrada àquelas que, comprovadamente, não soltam as tiras, caí de bunda no chão. Quanto prazer eu sentia em estar esborrachada naquele corredor, imóvel, livre daquela sensação de “Velocidade Máxima” que me afligia desde o salão de beleza. Quanto alívio.

Refeita do susto, levantei-me, não sem antes experimentar um belo par de Havaianas – que já saí calçando, mui agradecida e tranqüila. Nada como um produto de confiança.

Chegando em casa, pendurei os tamancos. Eles estão mais seguros na parede do meu quarto.

E eu, mais segura bem longe deles.

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