20 dezembro 2003

O espaço


Vivemos falando em falta de tempo, que os anos estão voando, que a vida mais parece um atropelo crônico e que não há jeito: 24 horas por dia são um insulto às práticas saudáveis de trabalho, família, saúde e lazer. Mas e o espaço nosso de cada dia, mês, semana... o espaço da vida?

Ninguém fala muito no espaço (a não ser naquele espaço físico que anda escasso nos grandes centros urbanos, claro). Mas eu me refiro às portas e janelas internas, à brisa que deixamos entrar – ou não – no nosso imbróglio emocional cotidiano, nas relações, enfim, nas instalações do sentimento humano. Não vou falar no “espaço do coração”, que já seria brega demais. Mas é mais ou menos isso que eu quero dizer.

Esse espaço também anda em falta. Andamos nos ocupando demais em preencher coisas, e, de dez anos pra cá, convencionou-se chamar o velho e bom “vazio” de depressão. Pronto, jogaram no lixo o último resquício de arejamento interior. Urbanizamos a alma.

Agora, o bom é deixar tudo bem fechadinho, de preferência a vácuo – que é para não escapar nada de dentro. Está faltando lembrar que a mesma janela que libera o gato também recebe a brisa, e lacrar todas as aberturas é terminar com as possibilidades, enclausurar, sufocar. Vale a pena?

Nunca antes ouvi falar tanto em “medo de se entregar”. Como se conviver com um parceiro ou assumir um “compromisso” – outro termo de efeito duvidoso, parece algo chato e com hora marcada! – fosse entregar a ele ou a ela um braço, e ficar sem. Conceitos que a gente leva pela vida afora, mesmo sem trazer à consciência, e se esquece de arejar, abrir espaço para questionamentos ou experiências que parecem inconvenientes à primeira vista.

Trancamos tudo, e ainda dizemos que é autopreservação.

Um pouquinho de brisa, mesmo que a maresia venha corroer alguns eletrodomésticos das nossas entranhas, deve ainda ser de boa valia. Deixar as minhocas da cachola respirarem; circular as idéias, desafogar as vias de uma consciência tão exigida e confinada pela culpa e pelos medos - sempre os mesmos!

Uma vozinha apita no meu ouvido há alguns meses, dizendo assim: “renovação”.

Ou estou muito enganada, ou a primeira coisa a ser renovada deve ser mesmo o ar que respiramos, em todos os sentidos. Para isso, haja espaço.

Espaço!


PS: Ouvindo Clara Nunes

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