11 março 2005

Sina


A Cíntia me contou que saiu na rua um dia, de bicicleta, e tinha tanta tristeza por dentro que imaginou que as demais pessoas do mundo tinham a obrigação – ela gritava, obrigação! – de consolá-la. O que fazia aquele estranho garoto de dez anos, arrastando um skate, perdido, suado e desgrenhado, que não estava lhe oferecendo colo? Por Deus, ela só queria um colo!, e tinha tanta gente na rua. E nenhum consolo, nenhum colo.

O que é que fazem as pessoas lá na rua, afinal, enquanto a gente sofre aqui por dentro?

Ela saiu pedalando, assim, do nada, por desaforo mesmo. Quero ver a cara do povo numa hora dessas. Quero só ver a cara deles. Quem vai ter a explicação, quem vai me pedir desculpas por estar distraído olhando as árvores – enquanto eu, tonta de ódio, choro, perda, inconformada, insana, tresloucada, doida varrida, eu não consigo sequer desviar os olhos de mim - e, mesmo assim, fixa e obcecada em mim, sigo não enxergando absolutamente nada?

O pior do sofrimento é a cegueira repentina que ele provoca. Some o chão, some o céu, somem as árvores. Sumiu a vida, sumiu a bicicleta. E a Cíntia sofria de uma terrível falta de tato. Coitada, além de cega era míope.

Não achou consolo nas entranhas nem nos estranhos, não encontrou razão, motivo, nem uma pista, indício. Botou a culpa na sina. Sua avó dizia, é sina, tudo era sina, e a Cíntia também tinha essa doença, então estava resolvido, era como um vírus: pobrezinha, está com sina. Que pecado, uma guria tão bonita.

Voltou para casa, às cegas, mal e porcamente tateando o portão, o caminho, as grades, a porta, o cachorro e a caixa de correspondência. Não havia correspondência alguma. Nada correspondia, ninguém era correspondido. Zero.

O caminho era escuro, o cão era mudo, a porta era dura. As fechaduras que a Cíntia nunca soubera mesmo manipular. Não sabia se abrir, não cabia se fechar. Sentou-se então na varanda - à beira da rua e à beira de casa, no meio, onde não é lá nem cá, no quase, no praticamente, no não concluído e nem começado, no caso abortado, na desistência da experiência, ali onde a vida se insinua e se renuncia ao mesmo tempo, egoísta, não oferecendo chance de avanço ou retrocesso aos mortais.

Ali não existia ninguém, e nem poderia, porque ali não há. Ali se aguarda, nunca se parte. Ali já se partiu, mas ninguém pôde provar. Não há rastro, poeira, dor, história. Ali se anestesia, e só.

Ali a Cíntia encontra paz.

E as pessoas da rua nunca mais a viram por lá.

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