06 outubro 2005

Erro de gênero


Quando pequena, eu imaginava que meu sobrenome continha um erro de gênero. Em vez de Da Pieve, deveria ser Do Pieve – afinal, Pieve é como todo mundo chama meu pai, que é muito homem. Não entendia o Da. E mais: achava, por conclusão infantil, simplista e doce, que os sobrenomes de todas as pessoas serviam para isto - dizer de quem elas eram.

Assim, um Maurício que fosse filho de um Lopes se chamaria Maurício Do Lopes, e uma Beatriz que fosse filha de um Antunes, Beatriz Do Antunes.

Mas e as mães? Não seriam igualmente proprietárias?

Minha mãe se chama Aninha. E não é que ficaria interessante – Bíbi D’aninha?


Deutschland


E me vem à memória um episódio de infância. Tinha 10 anos, fiz uma viagem à Alemanha com um grupo de 30 colegas e uma professora de música. Minha melhor amiga foi junto, e passamos o primeiro semestre (que precedeu a viagem) fazendo planos - que delícia ia ser aquilo, viver um mês longe dos pais, morando juntas, como faziam as americanas superadultas que iam para a faculdade.

Já no vôo de ida, quebramos o pau. Terminamos aquela amizade de uma vida inteira, ou seja, dois anos. (Dois anos, naquele tempo, valiam muito mais do que valem hoje. O câmbio do tempo é implacável).

Cheguei na Alemanha com dor de cabeça, confusa do fuso, enjoada do estômago, exausta do vôo e da briga com minha ex-melhor-amiga. Pior de tudo: ia ter que dividir o quarto com aquela inimiga mortal por longos 30 dias, já que tudo estava marcado e não tinha volta. Troço desgastante.

No primeiro dia, fomos dar um lindo passeio pela cidade. Impliquei com ela o quanto pude, e ela não revidava, ou porque era mais sensata, ou vai ver que tinha poderes para prever o que eu não conseguia. Lá pelas tantas, não se agüentou e veio me arrancar os cabelos, isso em pleno solo europeu.

A maioria da turma incentivava, outra parte tentava apartar, e a professora se viu desesperada. Os alemães comportados se horrorizavam com a algazarra brasileira, Deus que me perdoe, só de lembrar me arrepio. Gritaria, balbúrdia, gargalhadas altas. Coitada da tia Fulana, uma senhora tão boazinha.

Depois de nos embolarmos no chão – a Alemanha é ótima para isso, porque os carros param na faixa de pedestres -, aos puxões das tranças e bofetões nas orelhas, além das mordidas em casos extremos (há alguma ética nisso tudo, tá pensando o quê?), por final respingamos, uma para cada lado, não sei se por cansaço ou porque o momento implorava uma pausa. Artisticamente, eu digo.

Era a deixa para a única pessoa adulta impor alguma ordem, usando de princípio mais sóbrio, afinal. Deu nem cinco segundos, senti a sóbria mão da tia Fulana pinçando minha orelha esquerda e puxando como quem vai pendurar num varal. O mesmo ela fez com aquela traíra mirim - que me insultava ainda mais, agora ferida e humilhada gravemente diante das outras crianças.

E fomos nos arrastando, conforme as orelhas apontassem o caminho, sei lá por quantas esquinas daquele velho mundo cruel.

Claro que fizemos as pazes em dois tempos, mas aí já era tarde: sofremos as devidas punições. Passamos o dia seguinte enfurnadas numa saleta de fundos, concentradas na árdua tarefa de escolher duas enormes bacias de feijão. No próximo almoço, sairia uma típica feijoada brasileira, para apreciação dos simpáticos alemães que nos hospedavam.

Acho que eles nunca comeram tanta pedra na vida.

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