01 dezembro 2008

De auto-estima, groselha e laquê

Está bem, nunca fui a miss auto-estima. Tinha 9 anos e me achava esquisita, mas podia ser que melhorasse. Tinha 11, não melhorava. Tinha 12 anos, de vestido repolhudo (momento que minha mãe julga inesquecível - eu parecia uma princesa), pois não é que fiz parte de um bolo vivo do aniversário de uma amiga muito chique em Porto Alegre?

Dancei a valsa com um milico bastante educado, coisa e tal. Não tiramos nenhuma fotografia para guardar de lembrança, mas a minha memória é implacável: eu me sentia uma velha com aquela roupa e maquiagem, para não falar do cabelo empapado de laquê. Esquisita, dura e desconfiada de uma micro-bolsinha que me obrigaram a carregar e que, vá lá, combinava muito com o vestido. Mas o que eu vou poder levar aqui? Só o dinheiro (pouco) e o batom (mais um item fundamental que a minha autocrítica considerava dispensável). Aquele lilás na boca tipicamente incolor me dava a sensação de parecer que tinha recém chupado um picolé de groselha. Eu era o próprio picolé de groselha, gelado e imóvel, derretendo ao som da valsa e suando a camisa do pobre daquele milico.

Tinha ainda uma coisa com as mãos. Quando eu usava batom, muito raramente e sempre persuadida à exaustão, não sabia onde colocar as minhas mãos. Um inferno. Era como se o tom labial desnorteasse a minha figura como um todo, e o que já era sem jeito descambava de vez. Resultado: as mãos pagavam o pato. Onde enfiá-las? Que gestos eu faria? Mãos de menina, mãos de mulherzinha, mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura-bolo...?

Quando a valsa enfim terminou, o rapaz perguntou se eu queria um refrigerante e eu emudeci de pânico. Como assim, refrigerante? Não termina aqui o nosso número? Você está ameaçando continuar me acompanhando neste baile – e, pior, sem valsa para disfarçar? Escuta aqui, você acha que só porque eu pareço um picolé de groselha eu devo me casar com o primeiro militar que me oferecer fanta uva? Respeite o meu laquê!

- Não, obrigada, não bebo.
- Você é engraçada.
- Não, obrigada.
- Você tem um ótimo senso de humor.
- Me arruma uma cadeira?
- Como assim?
- Tá vendo aquela cadeira sobrando lá? Arrasta ela aqui pra mim, por favor?
- Você está se sentindo mal? Precisa sentar?
- Não. Quero botar as mãos na cadeira. Por favor, eu disse.

O guri trouxe a cadeira – era gentil toda vida, o que indica que desperdicei uma amizade promissora -, eu o dispensei e fiquei em pé, empertigada, com as duas mãos apoiadas na guarda da cadeira e um olhar falso que pretendia convencer alguém de que eu não conseguia me decidir, oh!, entre os brigadeiros e os cajuzinhos. Ufa, tudo estava resolvido. Era rezar para ninguém me desmascarar até a hora dos meus pais irem me buscar.

Logicamente eu fantasiava que a paralisia pudesse me tornar invisível, e aproveitava para emendar também um falso dilema bocó (brigadeiro ou cajuzinho?), que era para conferir um maior potencial dramático à situação. Empacada atrás de uma cadeira, as mãos fixas – e, portanto, impedidas de fazer o gesto errado -, e empacotada na indecisão dos doces, àquelas alturas eu já era praticamente uma pintura ou mesmo uma instalação artística em forma de convidada na festa da minha amiga chique. O resto da turma comia, bebia, dançava e conversava muito.

Hoje, quase vinte anos depois, vai ver que alguém olha uma foto que sobrou num canto e se lembra da grande festança da filha caçula dos Dorfmann, até com saudades.

- Escuta... Quem era essa guria que segurava uma cadeira espremida lá no cantinho, meu Deus?

Cada um com seu hobby, meu caro. Não fosse por mim, ninguém hoje estaria sabendo da festa chique que o seu Dorfmann deu à filha em mil novecentos e groselha com laquê.

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