10 outubro 2004

Ferreira Gullar, às vezes


Ganhei um DVD do show “Brasileirinho”, da Maria Bethânia. Gravado em março deste ano no Canecão, elogiadíssimo, é mais um produto do selo Quitanda (da própria cantora).

O poeta Ferreira Gullar - cuja imagem abre o show, no telão, recitando “O Descobrimento”, de Mario de Andrade – dá um depoimento muito bonito na sessão de extras. Lá pelas tantas, ao falar da dificuldade que teve em escrever uma letra para “O Trenzinho Caipira” (de Heitor Villa-Lobos), sai-se com esta:

- É por isso que, quando me perguntam ‘você é o Ferreira Gullar?’, eu respondo ‘às vezes’. Porque às vezes eu tento botar a letra no Trenzinho Caipira e não consigo. Outras vezes, consigo.

Céus. Ferreira Gullar é às vezes, e me dá um arrepio ouvir isso do próprio. O papel do artista no mundo eu não me atrevo a palpitar qual seja; mas, aqui muito entre nós, não cabe a singela metáfora do “cair a ficha”? Olha, lá vai o poeta, provocando quedas de fichas nas cabeças dos passantes. Com a graça de Deus, ploft, ploft.

Afinal, quem aqui não já sentiu ser um “às vezes” de si mesmo? Genialidade à parte, quem nunca se estranhou num gesto, nunca se perdeu numa fala que não parecia a sua, quem nunca levou um tranco ou um branco da vida – e ficou sem reação, sem saber o motivo?

Eu era tão bom nisso, como fui travar justo agora? Ah, eu não sou disso! Já repeti esse número trezentas vezes; como é que fui me esquecer do principal? Nunca vou me perdoar por ter me ausentado de mim justamente nesse dia, logo hoje, eu me precisava tanto, tanto... judiaria.

Se não somos nós mesmos 100% do tempo, se nos ausentamos de vez em quando, se somos meio relapsos, se pecamos por incoerência ou inconsistência – então, afinal, quem somos (ou o que somos) nas outras vezes? Quem age por nós enquanto nós mesmos estamos dando uma voltinha até a esquina?

Quem será que somos na fatídica hora do cafezinho?

Uns idiotas, às vezes. Uns lapsos ambulantes, sem sotaques ou semblantes, uns restos de homens e mulheres, desconexos, deturpados. É, deve ser isso. Uns quaisquer, sem serventia alguma, pegos em flagrante no pior instante; uma vírgula deslocada, um texto vazio que nem lingüiça enche. Uns nada.

Ou, quem sabe, talvez, Deus seja tão camarada que nos faça pausar de nós mesmos vez por outra, que é para não enjoar. Que é para o povo aqui experimentar, vez em quando, súbitas sensações aparentemente meio desafinadas, mas que podem, sim, dar samba daqui a alguns compassos.

Lembra quando você não se reconheceu em alguma falha cometida; mas lembra também quando deu um salto mortal triplo e caiu firme, com o cabelinho ainda mais arrumado que antes. Não lembra? Ali você sorriu para a platéia e agradeceu, disfarçando a própria surpresa - nunca na vida que você sabia que teria força ou coragem ou ousadia ou talento para aquela acrobacia. Mas, olha aí, não deu outra: tinha.

Pode ser que o horário do cafezinho seja, não só uma ausência, mas uma boa oportunidade de trazermos à tona alguma coisa que estava submersa, e que pode vir a fazer a maior diferença. Talvez seja bom estar atento, não se irritar tanto com as escapulidas, deixar acontecer.

Pode ser que a vida esteja só propondo uma equação óbvia, do tipo: ausente-se = aumente-se.

Enfim: se Ferreira Gullar não fosse "só" às vezes, não seria Ferreira Gullar.

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